"Ciência e Humanismo", por Anísio Teixeira
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De:
“TEIXEIRA, Anísio. Ciência e humanismo. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.24, n.60, p.30-44, 1955.”
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“As épocas de confusão e conflito no campo das idéias são também as épocas de discriminação, de análise, de reformulação dos problemas e, dêste modo, de reclarificação dos objetivos e diretrizes do espírito humano. É neste sentido que Whitehead afirma ser todo choque de doutrinas uma oportunidade.
Ora, o meu propósito, aqui, é o de encarar o nosso tempo a essa luz. E creio não me levarão a mal a tranqüilidade com que proclamo a convicção de que as nossas divisões e contradições presentes são muito menos um flagelo, que uma oportunidade. Mais ainda: somente graças a elas poderemos ver quais os nossos reais problemas, poderemos redescobrir os pressupostos tácitos em que nos apoiávamos e, assim, trazer à luz os elementos necessários à análise e à reformulação indispensável, para uma nova integração.
Divisões e contradições não são, aliás, algo de estático, para serem estudadas em si mesmas; mas indicações de formas diversas de compreender, que coexistiam mal evidenciadas e que afinal explodem em conflitos inevitáveis, impondo uma solução ampla, senão de integração, ao menos de nova conciliação e harmonia.
A divisão que o nosso tema traz a debate é a divisão entre o "humano" e o "científico" e o "humano" e o "técnico", divisão e conflito que chegam a se manifestar, com tamanha intensidade, em certos meios ou certos grupos, a ponto de sugerirem soluções extremadas, que se inspiram menos em quaisquer filosofias, que em elementares revoltas contra a ciência e a técnica, e retornos sentimentais aos estudos literários e lingüísticos que, em outros tempos, constituíram os chamados estudos humanísticos.
O exame dêsse conflito e das concepções nêle envolvidas parece-me que pode ser fecundo em esclarecimentos e, talvez, mesmo em sugestões dirimentes.
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Não irei, mais uma vez, caracterizar a nossa civilização, a civilização dos nossos dias. Basta lembrar que a chamam de "material", "científica"' e "técnica", em oposição explícita ou subentendida a "espiritual", "moral" e "humana". Acentuamos que o homem está progredindo materialmente e se deteriorando espiritualmente, acrescentando muitos que isto se vem dando pelo abandono alarmante dos valores morais e humanos. Tais valores "espirituais" seriam os desenvolvidos pela literatura, enquanto os valores "materiais" à ciência se filiariam. Daí a revolta contra a ciência e a exaltação dos estudos lingüísticos e literários, como os verdadeiros estudos humanísticos. A ciência "materializou" a vida humana. Salvar-nos-emos voltando aos estudos exclusivamente literários que marcaram as culturas pré-científícas...
Por mais espantoso que pareça, não é outra a atitude de certas correntes, cada vez mais pressionantes nos dias de nossa ainda adolescente civilização industrial. Os novos "humanistas" não pretendem humanizar a ciência, responsável pela civilização tecnológica e industrial, em que vamos ingressando, mas humanizar o homem des-humanizado pela ciência, por meio de doses intensivas de estudos lingüísticos e literários que, só êles, teriam o dom de re-humanizá-lo. Não apresentam tal sugestão como algo de original e novo – que poderia sê-lo, na verdade – e sim, como lição a tomar e repetir de épocas passadas, em que os únicos estudos então susceptíveis de coordenação e sistematização teriam criado as civilizações "espirituais", de que se recordam com inexaurível nostalgia.
Ora, o que foram realmente essas civilizações "espirituais"? Os "neo-humanistas" que hoje nos acotovelam não escondem que os seus mais lídimos e autênticos delineamentos estariam aquém da era cristã, na Grécia do período chamado clássico, ou – alternativa de viagem mais curta contra o tempo – nas revivescências do renascimento, não devendo, entretanto, ser esquecido o longo período medieval, em que, de qualquer modo, os seus intelectuais (muito poucos), não sendo "científicos", alimentavam-se, de conserva, bem ou mal, daquela parte do saber miraculoso, que foi possível ou foi conveniente salvar da antiga civilização pagã.
Para curar a desidratação espiritual e moral da época e os sustos e os alarmas que ela está provocando, convenhamos que a panacéia... é forte, forte e heróica!
Mas foram realmente "espirituais" essas civilizações ou tais períodos de nossa comum civilização ocidental? E se o foram, por que e em que consistia a sua "espiritualidade"?
Gilberto Freyre, Anísio Teixeira e Jorge Amado
Se bem refletirmos, veremos que a dita "espiritualidade" decorria de um sistema já bem marcado de classes, em que certo grupo de indivíduos dispunha de suficiente lazer para se entregar a atividades intelectuais, estéticas ou recreativas, que chamavam de "espirituais", por serem livres ou espontâneas – ou não produtivas. O "espiritual" seria o que estivesse suficientemente desligado de condições materiais forçadas, para poder ser praticado... "livremente".
Os gregos, já então alicerçados em um regime escravocrata, chegaram, efetivamente, a desenvolver tôda uma filosofia para êsse tipo especial de homem "livre" e "espiritual". Aceita que fôsse a teoria de que certos homens são "escravos", até por "natureza", a teoria social conseqüente importaria em um conceito de "homem livre" à maneira grega, isto é, de homem cujas necessidades materiais seriam atendidas por "escravos" e que se entregaria às delícias da vida mental, como um "quase-espírito", que passaria a ser, assim, cada um dos privilegiados, desde que não o assustasse, como então não o assustava, qualquer estálido da paz social em seu derredor, como em Roma veio a acontecer, com Spartacus – um grande susto, a cujo registro, bem ou mal, não pode fugir a história.
No fundo, os gregos alimentavam o sonho de uma sociedade que tivesse as "virtudes" ou o determinismo que emprestamos às sociedades de formigas, com as suas castas de trabalho e de lazer biològicamente estabelecidas, ou seja por "natureza", ficando às classes de lazer a tarefa ou missão de homens, no sentido amplo e estético de criaturas semi-espirituais. Não é sem razão o reconhecimento de que a utopia da república de Platão nos levaria a uma sociedade totalitária do gênero fascista.
A filosofia e a teoria do conhecimento elaboradas por e para uma civilização baseada na divisão entre atividade material e atividade espiritual, haviam de ser coerentes com seus pressupostos sociais e imaginar a vida perfeita como uma vida devotada ao conhecimento pelo conhecimento, ao conhecer para contemplar e participar das delícias da vida das idéias e pelas idéias.
O homem assim é que era o animal racional, perfeito, o animal que concebia o conhecimento e se deleitava no saber. Mas, ao lado dos semi-espíritos "livres", da Grécia clássica, uma classe semi-livre ou cada vez menos livre de trabalhadores, inclusive até mesmo os artesãos, e tôda uma classe de puros escravos labutavam e pelejavam na velha lida humana, material e dura, em que os homens não são a ficção do animal racional, mas, animais de ação, criaturas de propósitos e hábitos, de desejos e mêdos, de paixões e indiferenças, para quem o conhecimento não pode ser nunca um artigo de contemplação e de êxtase, mas instrumento de trabalho, modo de fazer as coisas, regra para o comportamento, conjunto de dados para a solução de seus múltiplos e permanentes (e humanos, muito humanos) problemas.
O tão apregoado ideal de cultura grega era, pois, – reconheçamos a indiscutível verdade – o ideal particular, parcialíssimo de uma classe ou casta de sibaritas da inteligência, tão especial e tão limitada quanto o ideal de vida monástica, que lhe sucedeu e que da fórmula grega se originou, com a inclusão a mais, tão-sòmente, de uma falsa atitude de sacrifício, que os helenos ignoravam, pois já se julgavam, aqui na terra, em plena beatitude espiritual.
Não fôsse a divisão em castas da sociedade grega, pela primeira vez posta e alcandorada em filosofia, e o lazer assegurado aos homens "livres" – isto, é, livres de trabalhar – e não seria possível a sua teoria do conhecimento, nem a sua teoria da vida perfeita. Longe de mim insinuar que sua contribuição não foi grande. Foi grande e mesmo imensa, em sua exaltação da faculdade humana de conhecer, a ponto de resumir o homem à inexaurível curiosidade e à busca incessante do saber pelo saber, o saber de contemplação e fruição, primacialmente, com discutíveis possibilidades de aplicação, secundàriamente.
Mas, nenhuma sociedade moderna, fundada em concepções completamente diversas, pode ser atendida pela tão linda fórmula grega. Como, igualmente, nenhuma sociedade moderna pode encontrar nas fórmulas medievais a solução para os seus problemas de organização e bem-estar humanos.
A velha idéia de separação entre o material e o mental, transformada na Idade Média em separação do homem e do mundo, fundada aquela numa sociedade de homens "livres" e de escravos, os "livres" encarregados do espírito e os escravos da matéria, e a separação do homem e do mundo, em duas vidas, uma terrena, outra supra-terrena; sòmente uma tão velha idéia é que podia sustentar a concepção de mente ou espírito como algo que se pudesse ter a cultivar, separadamente, à margem ou acima das atividades materiais, correntes e absorventes de tôda a vida humana, como ela é, para a grande maioria ou a maioria crescente dos sêres humanos.
Vistos os antigos e superados períodos da evolução humana à luz das suas próprias condições, as suas respectivas filosofias nos surgem como esforços de racionalização perfeitamente coerentes e, se quiserem, admiráveis; mas, tão intransplantáveis para a nossa época quanto as armaduras dos cavaleiros medievais ou a consulta aos oráculos na Grécia.
A filosofia e o "espírito" de cada época são produtos, quiçá subprodutos de sua cultura, não sendo possível "espiritualizar" uma civilização com tais produtos ou subprodutos de outras.
Um velho amigo meu, encanecido no estudo da história e das vicissitudes da cultura humana, imaginara, a êsse respeito, uma peça de teatro em que satirizasse a nossa confusão filosófica moderna, obrigando os homens a se vestirem de acôrdo com a idade de suas idéias. A sátira lembraria o teatro grego e, talvez, fôsse ,mais eficiente do que qualquer outra argumentação para curar os que pensam salvar a cultura "espiritual" da humanidade, já obrigando a todos a aprender latim, já, segundo métodos mais sofisticados, obrigando todos a lerem uma prateleira de livros clássicos. E certas prudências ainda recomendariam que uns poderiam ir tais como se salvaram do tempo (quando integralmente foram salvos), para o acervo da prateleira recomendada, mas, outros, só em estratos, por antologias ou seletas, deveriam lá figurar...
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A realidade é que em ambos os períodos em que prevaleceu uma filosofia mais contemplativa do que ativa para a vida humana isto é, na Grécia e na Idade Média, e que, por isto, se consideram mais "espirituais", o que se deu foi uma dualidade de sociedades, nítida e real entre os gregos, com a divisão, afinal sem disfarces, entre homens "livres" e escravos, e amenizada ou disfarçada na Idade Média, com a idéia de secular e religioso, ou mundo e Deus, temporal e espiritual, esta vida e a outra.
Em ambos os casos, o dualismo filosófico de matéria e espírito concretizava-se efetivamente em uma dualidade de classes, de instituições, ou de formas de vida tanto quanto possível apartadas, como era mais particularmente a situação na Idade Média.
O caso da sociedade moderna é, sob muitos aspectos, o oposto da sociedade grega e mesmo da medieval. Estamos, desde o aparecimento da ciência, como é ela concebida hoje, a tentar uma organização social em que todos os homens tenham oportunidades iguais para se desenvolverem segundo as suas aptidões individuais e viverem aqui e agora uma vida decente e de progressivo bem-estar, fundada no trabalho e em uma organização social justa.
O ideal do homem "livre" grego chega a ser uma das mais condenáveis formas de viver na sociedade moderna e o ideal monástico da Idade Média sòmente, em rigor, sobrevive nas ordens religiosas ativas e de trabalho, ou neste sentido evoluídas. Se alguma coisa, aliás, caracteriza, em síntese, a sociedade moderna, é o ideal de trabalho, devendo vir a ser esta a atividade por excelência honorífica do nosso tempo.
Como poderia, assim, a "espiritualidade" típica dos homens de prol, gregos ou medievais, fundada na contemplação e na supressão das atividades materiais, ser o remédio para a nossa "materialidade"? E como poderia a ciência, cujos frutos são as tecnologias – as novas técnicas de cunho ou caráter científico – que estão a recondicionar o trabalho humano, ser considerada culpada do "materialismo" moderno?
Nunca poderíamos ensaiar o nosso modo atual de vida, sem as transformações tecnológicas que a ciência moderna nos trouxe. E nunca teríamos chegado a tal ciência sem a revisão da "fórmula" grega do conhecimento. Essa revisão se operou com a ênfase dada à observação e o impacto desta observação, renovada, melhorada e ampliada, sôbre os conceitos do mundo especulativo helênico e medieval.
Com os progressos da observação e da experimentação científicas, passamos a uma nova teoria do conhecimento. Êste já não é o resultado da pura atividade mental a que se referiam os gregos, mas o produto de uma série de operações materiais e concretas, inclusive as operações mentais, também elas materiais e corpóreas. Não só a teoria do conhecimento, mas também o seu objeto foram modificados, pois, o material e não apenas o mental, o mutável e não apenas o imutável, o temporal e não apenas o eterno passaram a ser os novos e verdadeiros objetos do conhecimento humano. Salvo na pura especulação matemática (e mesmo nesta os aparelhos começam a ingressar, e com êles os processos concretos), em tôda a demais atividade intelectual humana a identificação desta atividade com os métodos concretos de trabalho material já se estabeleceu quase por completo. A distinção entre os laboratórios – êste próprio nome seria inconcebível na Grécia – e os ateliers e oficinas ou, as fábricas, e, hoje, os grandes "combinados" fabris, é uma distinção apenas de grau ou de fins imediatos, e nunca da qualidade do trabalho empreendido. O trabalho para produzir coisas e o trabalho para produzir conhecimentos sôbre as coisas (êste quando em nível verdadeiramente científico) são idênticos. Em um e outro, os processos de observação, ação e contrôle são equivalentes, com simples diferenças de ênfase e refinamento, quanto aos alvos e à planificação, aliás conectados em interação e interdependência constantes.
Com esta nova teoria do conhecimento que, quando não existente ou não de todo elaborada, deveria ser urgentemente formulada ou aperfeiçoada, seria impossível a filosofia do "espírito" elaborada, com a adequação que já salientamos, pelos gregos, para a sua sociedade e o estágio do seu desenvolvimento. Mas, assim como eram humanos, humanizantes e humanísticas, pela forma que focalizamos, a filosofia e a ciência gregas, assim deveriam ser consideradas humanas, humanizantes e humanísticas a ciência moderna e, como ela, os seus frutos – as tecnologias – que multiplicaram, de modo tão espantoso, os resultados do esfôrço humano, com economia dêste, como nunca possibilitada, e oportunidades de lazer e de aperfeiçoamento espiritual, como nunca sonhadas, para todos os que trabalhem (ou desde que todos trabalhem e produzam), tudo a depender, apenas, de simples reajustamentos sociais.
Como se pode conceber que alguém venha a considerar inumanos êsses desenvolvimentos e a buscar em filosofias peremptas os segredos do humanismo, a não ser que êste alguém conserve realmente da vida a antiga idéia grega de que só a contemplação intelectual e estética, privilégio de poucos, seja fim digno do homem?
Só a paradoxal conservação dêsse "ideal" em amplos grupos de intelectuais e a recusa da nova ciência (para sobreviver) em elaborar a sua própria filosofia explicam o recrudescimento intermitente das tendências de manter os dualismos, em que se apoiavam a filosofia e a ciência grega e medieval.
Tôda tentativa de "espiritualizar" a vida moderna, mediante superfetações culturais clássicas ou medievais, funda-se na conservacão do dualismo grego entre vida material e vida mental, dualismo que o conhecimento científico, a nova teoria do conhecimento científico, o método do conhecimento científico destruiu e aboliu.
Sòmente será possível "espiritualizar" e "humanizar" a vida moderna, humanizando e espiritualizando a ciência, o trabalho e a organização social, de nossos dias, senão para agora, para o mais ou menos próximo futuro. O divórcio entre o material e o espiritual é inconcebível, salvo como aspectos da mesma atividade geral, que é, simultâneamente, material e espiritual ou espiritual e material.
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Históricamente, todos sabemos que o saber científico, como o concebemos hoje, se elaborou por saltos e não sem luta e esfôrço, para vencer resistências obstinadas. Para que o método experimental se aplicasse ao mundo físico, primeiro, e depois, ao mundo fisiológico, houve perseguição e martírio... E porventura já estará superada a era dos perseguidos e dos mártires do progresso humano?!...
Tais conhecimentos eram considerados perigosos, porque ameaçavam interesses criados e abalavam os fundamentos de uma ordem social inspirada em um saber unificado e pretensamente comum a tôda a civilização vigente.
Como viemos, depois, a considerar tais conhecimentos "materiais" e estranhos aos dominantes aspectos sociais e "humanos" da vida?
É que, conquistado o progresso científico moderno, as velhas idéias não se consideraram derrotadas, mas apenas se retiraram para trincheiras mais profundas. O conhecimento do mundo físico, o conhecimento do mundo biológico deixaram como que intactas ainda as regiões do social, do político, do moral e do religioso. Nessas áreas, onde se decidem afinal, por tradição, os interêsses considerados máximos da vida humana, nem sequer teve entrada ainda a ciência, efetivamente. É êste o mundo dos "valores", que continuam a ser governados por um outro tipo de saber – o saber filosófico, ou o saber revelado – ao tácito influxo da tradição, ou pela pura e simples pressão de grupos e classes. Os velhos dualismos irredutíveis aí se refugiam, mantendo a separação entre meios e fins, entre o mecânico e baixo e o moral e alto, o supérfluo e espiritual e o prático e útil.
Não se trata de algo sem conseqüências, pois, devido a tais dualismos é que a nossa civilização, sob o impacto cada vez mais imperioso da ciência, se faz material e inumana, com negação ou exclusão de outros valores, digamos morais, que não são pela ciência dela apartados, mas sim pelos que da ciência usam e abusam, pondo-a, ao serviço não da humanidade, mas dos seus próprios fins e interesses.
Concebida a ciência como uma fabricante de meios sem jamais poder alçar-se aos fins, pode ela ser utilizada para construir ou destruir a vida, sem que em nada isto a afete. Ora, a crise de nossa época é exatamente esta.
A ciência, que já conquistou, praticamente, o mundo físico, que está a progredir a olhos vistos no mundo biológico, aumentando com suas vitórias a praticabilidade dos propósitos e objetivos mais humanos, tem de agora estender os seus métodos e processos de conhecimento ao mundo dos propósitos e dos fins verdadeiramente humanos. O tratamento diverso dêsses graves problemas humanos, pretendendo subtraí-los aos métodos da ciência, que vem permitindo que a vida humana se torne o joguete dos interesses desencontrados e em conflito da nossa época em desenvolvimento, ao sabor de doutrinas absolutistas que, grosso modu, na extrema-esquerda ou na extrema-direita, erguem princípios dogmáticos anteriores e superiores à ciência, para entravar-lhe, justamente, a ação renovadora, construtiva.
O problema de humanismo e ciência tem, assim e por tudo isso, importância fundamental. E o conflito que vimos analisando é a oportunidade de trazer à baila questões já esquecidas e esclarecimentos necessários para a sua gradual e adequada solução.
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Fôsse na Grécia, ou na Idade Média, ou no Renascimento, ou nos séculos dezessete e, em parte, até mesmo no dezoito, religião, filosofia e ciência andavam ainda, mais ou menos, de mãos dadas, de regra apoiando-se em um corpo aparentemente unificado de crenças, doutrinas e verdades.
O fato da separação entre religião e filosofia e filosofia e ciência é relativamente recente (mal se esboçou no século XVII, acentuando-se no XVIII. . . ) e foi menos o resultado de efetiva decisão intelectual a respeito, que um arranjo de trégua, na guerra real em que entraram êsses três campos de conhecimento, desde que a ciência elaborou definitivamente seu método de trabalho, isto é, a investigação científica.
A luta que êsse novo conhecimento empreendeu para se afirmar foi, tinha que ser, a princípio, exatamente uma luta de revisão dos conhecimentos religiosos e filosóficos, que se baseavam em especulações ou tradições superadas pelo método do conhecimento natural, realista, voltando da conceituação abstrata à contraprova da experiência, – numa palavra, científico.
Se o desenvolvimento intelectual da espécie fôsse algo de retilíneo e harmonioso, o método científico acabaria se afirmando em todos os campos e teríamos, hoje, uma religião, uma filosofia e uma arte em que prevaleceriam os mesmos ou equivalentes métodos, que dominam o campo da ciência, e permitem que os seus conhecimentos sejam garantidos, embora falíveis, e sobretudo sejam progressivos, por isto mesmo que auto-retificáveis.
Mas, o método científico, por um lado, demasiado revolucionário e, por outro lado, ainda em sua infância, não se podia revelar desde logo igualmente eficaz em todos os campos e, para sobreviver, teve que aceitar um modus-vivendi, restringindo seu campo de ataque ao mundo físico, abdicando de outros fins e propósitos além da busca de verdades limitadas, propositadamente limitadas, sem um pensamento pôsto, de antemão, nos efeitos e alcance das aplicações. Foi a época, gloriosa e relativamente pacífica, da pura "ciência pura. . . "
Esta circunstância é que levou a ciência a abdicar, aparentemente, de seu caráter de conhecimento humano, ou seja social, e se fazer um sistema de "conhecimentos especiais", isto é, sobretudo relativos aos aspectos físicos, materiais do universo.
A filosofia, por sua vez, em sua revolta contra o pensamento religioso dominante, arranjou a sua trégua ou modus-vivendi não em aliança com a ciência, mas, compondo-se em um outro campo de estudo, independente do religioso e semi-independente do científico, o campo de estudo do "ser" ou do "real", ou do "mistério" epistemológico, cujo conhecimento seria de natureza diversa do científico.
A religião, por sua vez, perdendo muito e cada vez mais o poder temporal, passou a "comportar-se" e, ignorando o conhecimento científico e o conhecimento filosófico, aos quais admitiu não combater expressamente, fixou-se em suas bases reveladas e supra-racionais, o que, afinal, seria talvez uma boa estratégia, se não fôsse simples tática, de variável aplicação em tempo e lugar.
Assim chegamos ao último quartel do século XIX e entramos no século XX com a cidade humana dividida entre êsses três campos de atividade intelectual e de desiguais progressos humanos. Em ciência, avançamos tremendamente, graças aos métodos de pesquisa cada vez mais refinados e eficazes. Em filosofia, entramos em algo de anárquico, com filosofias e filósofos pluralizados, em substituição a um corpo unificado de crenças e saber filosófico. Em religião, marcamos passo, conservando as religiões reveladas ou modalidades ecléticas de religiões "individuais" à nossa moda, ou regressamos, francamente, a superstições já de muito ao que parecia superadas.
A trégua sem vitória do grande conflito intelectual que, sob certos aspectos, podemos remontar aos séculos quinze e dezesseis, deixa-nos, assim, até o século XX, em plena confusão. Mas, não só confusão. O avanço do conhecimento científico e os seus frutos, as tecnologias, de base científica, transformaram a vida humana em todos os seus aspectos econômicos, sociais, morais e políticos. Mas, não prevalecendo em nenhum dêsses campos o método científico de estudo, observação e contrôle, e sim os métodos tradicionais e pré-científicos de direção e govêrno, – os resultados dos progressos da ciência não puderam ser orientados, vindo a provocar desordens, deslocamentos e confusões. A aplicação da ciência – esta totalmente indiferente aos resultados das aplicações – gerou desintegrações e fragmentações as mais Iamentáveis, muitas vêzes, para a vida humana em conjunto considerada, infundindo-lhe desequilíbrios e artificiais desigualdades, muito acima de tudo quanto se reconhecia como desigualdades humanas naturais. Mesmo onde os grandes dualismos surgiram ou foram sistematizados pela filosofia; mesmo ali, mesmo na Grécia, poderíamos conceber presenciarmos o que ora presenciamos, no mundo dividido de hoje? Nunca seria possível na Grécia considerar-se que à ciência fôsse indiferente usar a energia atômica na destruição da humanidade, ou no progresso do seu bem-estar. Ora, isto, exatamente, passou a ser possível em face da separação entre a ciência e a filosofia, recurso histórico de que se valeu a ciência para que a deixassem progredir.
A in-humanidade da ciência é algo de artificial, por certo, adotado como expediente de trégua, na luta do espírito humano contra a tradição, e que importa, agora, abolir, por isto mesmo que a ciência, embora julgasse inocente, talvez, o seu recurso de guerra fria, veio a se tornar, em virtude mesmo de sua conseqüente irresponsabilidade, perigosa e destrutiva.
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Cabem aqui e agora algumas desenganadas indagações, mesmo que a tôdas não possamos responder, resumidamente e desde logo.
Que temos feito, na verdade, desde o século dezenove, no campo da educação, no qual se formam os homens e onde se exemplificam as diretrizes reais de nossa civilização?
Ou damos ao homem uma formação literária e filosófica, ou lhe damos uma formação científica, ou misturamos ambas as formações em currículos tumultuados, ecléticos e confusos. Pela formação literária, alienamos o homem de sua época, pois essa formação literária é, geralmente, clássica. Pela formação científica, o alienamos dos propósitos e fins humanos, declarando que estamos formando técnicos ou cientistas, isto é, homens que lidam com os meios e nada têm a ver com os fins humanos. Pela formação pseudo-eclética, perturbamo-lo ainda sem verdadeiramente formá-lo.
Onde a formação do homem responsável, de referência ao seu tempo e à sua civilização? Deixamos isto à religião? E que faz a religião?
A religião, de fato, acrescenta-se, sobrepõe-se, adiciona-se à formação técnica ou à formação literária, às quais já não é possível contrapor-se – ambas, em rigor, senão imorais, a-morais – sem integrar-se com nenhuma delas.
Quando se iniciou o que se poderia chamar a revolta da razão contra as crenças de fundamento extra ou supra-racional, a Igreja mais de uma vez se insurgiu contra a teoria da dupla verdade, de que Pietro Pomponazzi, em 1518, foi um dos mais explícitos protagonistas, embora a sua ortodoxia parecesse sempre mais uma complacência com os tempos (já então!) do que uma convicção própria. Como cristão acreditava na imortalidade da alma individual, mas como filósofo, não.
Hoje vivemos com a verdade já não dupla, mas, no mínimo, tripla. Há as verdades científicas, as filosóficas e as religiosas. E o resultado é não têrmos nenhuma verdade válida ou prevalente, e a vida se orientar pela tradição e pelo jôgo das fôrças de pressão, mais ou menos poderosas que surgem ou se mantêm em campo, usando de tôdas as armas.
Não se julgue que esteja a defender algum corpo de crenças dogmáticas. Não há falta delas.
O que falta, ao contrário, e o por que cumpre agora nos batermos, é um corpo de crenças científicas, isto é, fundadas na observação e experimentação, como já existe relativamente ao mundo físico, a ser estendido ao mundo social, moral, religioso e político, com a, mesma validez reconhecida. O método científico, uma vez aí amplamente aplicado, com a inspiração e a audácia que caracterizaram a sua aplicação ao mundo físico, virá transformar os conhecimentos e tradições pré-científicas ainda hoje reinantes neste mundo nosso, dos supremos interesses humanos. É devido à separação, entre êsses dois mundos, que a ciência e a técnica são ensinadas como algo de especial e mecânico, sem as conexões com o mundo humano a que vão servir, e daí as suas conseqüências des-humanizantes. E a literatura e a filosofia, por sua vez, são ensinadas como disciplinas humanas separadas da ciência e da técnica, que nos estão transformando a vida e a nossa suposta natureza, e em conseqüência desintegrando, alienando o pressuposto humanista do seu tempo e do seu mundo. E a religião, por último, acrescenta-se a êsse dualismo, produzindo um terceiro grupo de verdades, já agora mais ligado a uma outra vida do que às responsabilidades do homem, agora e aqui, portanto, também alienantes. São, assim, três alienações, a da ciência, a da literatura e filosofia e a da religião.
Como, pois, surpreendermo-nos de que o homem, hoje, em meio aos prodígios de sua época, se sinta mais do que nunca alheio ao seu tempo e, o que é muito pior, alheio ao seu semelhante?
O remédio para tal situação não será, contudo, – destaque-se bem e a tempo esta ressalva indispensável – o regresso a nenhuma das verdades totalitárias de outras épocas, mas, a gradual introdução do método científico aos campos de que êle vem sendo banido e a reintegração da verdade científica no seu contexto humano, ensinando-se a verdade sôbre os fatos, a verdade sôbre os meios, a verdade em função dos fins a que deve servir.
A divisão, com efeito, entre meios e fins é uma conseqüência do falso dualismo entre ciência e filosofia e ciência e religião. Não há meio que não seja um fim, nem fim que prescinda de meios. Dizer-se que a ciência nos dá os meios, mas não nos dá os fins, é algo que se custa a conceber, sendo, devendo ser a ciência um produto do homem e para o homem. A não ser que a ciência fôsse cultivada por sêres extra-humanos, indiferentes aos interesses e fins humanos, ninguém poderia imaginar que o homem estudasse o câncer.. . para melhor difundi-lo.
Pois, a divisão entre a ciência-meios e a filosofia ou religião-fins produz nada menos do que isto. Os cientistas passaram a sêres extra ou in-humanos, e quando alguns, como Einstein ou Oppenheimer, se lembram de que são humanos, corre pelo mundo uma surprêsa... Pois não é que êsses operados da ciência estão a querer dirigir a vida?
E sente-se, aí, em singular perversão, o resíduo da velha fórmula grega. Os cientistas, transformados em elaboradores apenas de meios, para fins que lhes são alheios, tomam o lugar de artesãos – técnicos nos dias de hoje – e, como tais, ficam subordinados aos elaboradores dos fins, que são a tradição e os que a interpretam e praticam, isto é, os legisladores e políticos, nem filósofos nem cientistas, mas, oportunistas e empíricos, bem pouco autônomos, aliás, porque nada dirigem, mas se deixam ir à deriva, sacudidos, aqui e ali, pelos empurrões e pressões das lutas e conflitos de grupos contra grupos, quer a êles se filiem, quer pretendam ser a êles estranhos ou não subordinados.
Confesso sentir certa dificuldade em analisar a situação presente, não porque lhe ache difícil explicar a extrema confusão, mas, exatamente, por achá-la demasiado óbvia e inevitável.
Para o meu espírito, pelo menos, a chave de tudo está nessa estranha separação de meios e fins. Todo o nosso "progresso" está infectado pela desintegrante concepção dualista, a que mais destacadamente me estou referindo.
Tomem-se as chamadas técnicas sociais, que deve, não a Universidade, mas a escola primária ensinar: ler, escrever e contar. São, sem dúvida, sociais, pois leio, escrevo e conto para poder conviver, trabalhar, comunicar-me e resolver os problemas, sem dúvida sociais, de minha vida.
Pois não é que se pensa (e se pratica!) que se pode ensiná-las, separadamente, como técnicas, ou meios, e depois deixar ao indivíduo que aprenda por si como usá-las?
Com efeito, que faz a escola primária? Esforça-se o mais possível, nos primeiros anos do seu curso, a ensinar tais técnicas, como algo que se aprende independentemente, separadamente, isoladamente, e, depois, prossegue ensinando outras informações e outras técnicas, sem jamais, consciente e deliberadamente, ensinar para que, em que e como usá-las. Quando educadores mais esclarecidos lembram que isto é o começo do processo de desintegração do homem, e que todo ensino deve ser completado ou melhor integrado em uma atividade inteiriça, em que a operação de saber se confunda com a de agir, chamam-nos de practicistas, utilitaristas, pragmatistas, destruidores de algo espiritual, quando não espiritual é, exatamente, essa possibilidade destrutiva de aprender meios e não aprender fins, isto é, como usar os meios.
Estou convencido de que tanto se pode ensinar a ler como a ter bem, isto é, a ler e a escolher o que ler. Mas a falsa idéia de que posso ensinar a ler, porém não posso intervir no processo de escolha, porque tal processo é "livre" e pode ser governado por "imposição externa", e nunca por esclarecimento e ensino; essa idéia falsa levou a escola, sob o pretexto de ser liberal, a julgar que só pode ensinar técnicas, meios e nunca fins, isto é, usos. Ou seremos dogmáticos e imporemos os fins, ou nos detemos nos meios e retiramos qualquer sentido moral ao ensino.
Ora, a solução não está numa coisa nem noutra, mas na boa doutrina de que os fins não são algo estranho ao contexto das situações, porque são objetivos e propósitos, fins em vista, da própria atividade humana, susceptíveis de serem estudados, esclarecidos, alargados e melhorados, tanto quanto as técnicas de que dependem e simultâneamente com elas.
Dei, muito de propósito, um exemplo elementar. Mas, nêle está contida tôda a filosofia, que isola o homem do mundo e o julga um ser estranho ao mundo, insusceptível de se deixar governar pelas luzes da razão, essas mesmas luzes que, devidamente aplicadas, lhe estão permitindo descobrir a natureza do mundo externo e domesticá-lo para o seu uso.
Se pusermos o método científico – que nos deu o corpo de conhecimentos positivos e provados a respeito do mundo físico – a serviço do estudo do homem, vamos progredir no campo dos chamados fins ou valores, do mesmo modo que progredimos em física e biologia.
Antes, porém, cumpre-nos reinterpretar ou melhor re-definir o conhecimento humano, estabelecer as bases do conhecimento, experimental como as bases de todo o conhecimento, seja científico, filosófico, moral ou religioso, e reintegrar o ensino das ciências no seu contexto humano, ensinando-as não como atividades de monstros extra-humanos, mas como uma das mais significativas e ricas atividades humanas, desde que exercidas com o vivo sentimento dos seus fins, seus usos e suas conseqüências humanas.
Não serão estudos lingüísticos e literários que nos irão humanizar a civilização, mas, o estudo da ciência aliada ao da sua aplicação, o estudo da ciência em suas conexões com filosofia e a vida, o estudo da ciência pelo seu método e seu espírito, que importa introduzir em todos os demais estudos e, mais do que isto, em nossa vida prática, em nossa vida moral, em nossa vida, social e em nossa vida política.
Não se trata de cientificismo, que seria ainda uma compreensão fragmentária da ciência, pois importa na aplicação apressada de resultados parciais da ciência, concebida isoladamente, como ciência do físico, no mundo moral, político e social. Trata-se, como já disse, antes de uma ampliação do uso do método científico.
Há vários modos de se entender o que seja ciência. Em sentido absolutamente restrito, apenas seriam ciência as ciências tidas como "exatas", sendo veteranas no merecerem o epíteto, as matemáticas e as ciências físicas que nelas se fundam. As próprias ciências biológicas seriam excluídas. Mas, em sentido lato, ciência é antes um método de se obter conhecimento razoàvelmente seguro do que um corpo definitivo, imutável de conhecimentos.
Tal método consiste na observação cuidadosa e objetiva e na verificação das conseqüências, no contrôle seguro dêsses processos de observação e verificação para o efeito de poderem ser repetidos por outrem, e na acumulação progressiva dos resultados apurados, a fim de poderem ser utilizados em novas observações e novas verificações das conseqüências.
Sempre que se estiver utilizando êsse método está-se fazendo ciência e seguindo a grande trilha real do conhecimento experimental e progressivo. Assim foi na matemática, assim na física, assim na biologia e assim será em todos os demais campos dos conhecimentos humanos.
A aplicação universal do método científico e o abandono do fatal dualismo entre meios e fins, fazendo com que se faça e se estude ciência conjuntamente com (não tenhamos mêdo ao têrmo) filosofia, no sentido grego de sabedoria, isto é, a ciência do uso humano da ciência, não nos darão a felicidade imediata, mas nos encaminharão para a senda de um progresso integrado, harmônico, e então sim – humanístico, humanizante e humano...”
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