domingo, 15 de março de 2009

"A História das Leis de Mendel na Perspectiva Fleckiana." - por Leite, Ferrari e Delizoicov, 2001


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LEITE, Raquel Crosara Maia; FERRARI, Nadir; DELIZOICOV, Demétrio; "A História das Leis de Mendel na Perspectiva Fleckiana." Belho Horizonte (Minas Gerais): Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências - ABRAPEC, Revista Brasileira de Pesquisa em Educação - RBPEC,v.1-2, p. 97 - 108, 2001.
Trazido de: www.fae.ufmg.br/abrapec/revistas/V1-2/v1n2a9.pdf
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Resumo
Apresentamos aqui um material dirigido ao professor, que pode servir de suporte no ensino de ciências contextualizado historicamente. A partir das categorias estilo de pensamento e coletivo de pensamento propostas pelo epistemólogo polonês Ludwik Fleck, neste trabalho buscamos estabelecer relações entre a produção científica de Mendel e o contexto social, histórico e econômico de sua época. Concluímos que a sua participação em diversos coletivos de pensamento teria contribuído para que Mendel encarasse o problema da hereditariedade sob uma nova perspectiva. Sugerimos a possibilidade deste material subsidiar a atuação do professor na perspectiva de um ensino de ciências que considere a abordagem histórica.
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Abstract
The theory of “thought-style” and “thought-collective” formulated by the polish epistemologist Ludwick Fleck is used here in order to find possible relationships between Mendel’ work and the social, historic and economic environment of his time. Our analysis points out that his participation in various “thought-collectives” contributed to Mendel’s new perspective regard the heredity question. The information contained here can be of help to teachers who consider the historical approach when teaching science.
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Introdução
O ensino de ciências necessita do aporte da história das ciências para se efetivar como instrumento de alfabetização científica (termo aqui empregado na acepção de Fourez, 1994). Esta perspectiva é válida quando se considera os aspectos sociológicos na origem dos conhecimentos científicos, isto é, quando a história não é vista simplesmente como uma série de nomes, datas, anedotas e feitos heróicos de personagens geniais.
Nossa experiência tem mostrado que, muitas vezes, os professores são motivados a utilizar esta abordagem mas enfrentam dificuldades em encontrar material bibliográfico adequado.
Este trabalho é uma tentativa de contribuir para o ensino de ciências, particularmente com o ensino de tópicos ligados à genética, partilhando um olhar sobre a história das Leis de Mendel que ainda hoje são centrais na biologia. Faremos aqui uma análise da produção científica de Mendel em relação com o contexto social, histórico e econômico de sua época, a partir das categorias estilo de pensamento e coletivo de pensamento, de Ludwick Fleck. Este tipo de análise permite abordar a natureza coletiva da investigação, os fatores externos à ciência, o caráter histórico do saber, a tendência à persistência dos sistemas de idéias e o olhar formativo como elementos ligados à gênese do conhecimento.
Os livros didáticos frequentemente apresentam Gregor Mendel como um dos heróis da
ciência1, atribuindo-lhe o título de “pai da genética”. A imagem que surge é a de um monge que, trabalhando como um pesquisador recluso, realizando experiências com ervilhas, em um mosteiro isolado, conseguiu estabelecer as “leis da hereditariedade”.
A partir das reflexões de Fleck, nossa hipótese é a de que o trabalho de Mendel está em sintonia com o contexto em que viveu e que é fruto de suas relações com estilos de pensamento diversos.
Esta perspectiva considera os aspectos sociológicos e históricos na gênese das teorias de Mendel, sem desmerecer seu trabalho individual e sua genialidade. Utilizaremos as categorias propostas por Fleck para analisar a origem e o desenvolvimento do pensamento de Mendel, estabelecendo relações com os grupos (coletivos de pensamento) com os quais conviveu e com o contexto intelectual e econômico de seu período histórico.
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A epistemologia de Ludwik Fleck
Ludwik Fleck (1896-1961), médico de origem judaico-polonesa, foi clínico e pesquisador em laboratórios de bacteriologia e imunologia. Sua importante contribuição também no campo da epistemologia, foi propiciada por seus estudos de filosofia, sociologia e história (Schäfer e Schenelle 1986) e por sua participação na Escola Polonesa de Filosofia da Medicina (Ilana Lowy, 1994 e Da Ros, 2000).
A primeira obra epistemológica de Fleck, publicada em 1927, teve como campo de análise a medicina. Na publicação seguinte, de 1929, as afirmações que ele fez para este campo do saber são estendidas para as ciências naturais em geral (Schäfer e Schenelle, 1986). Em seu livro A Gênese e o Desenvolvimento de um Fato Científico, publicado em 1935, Fleck expõe as linhas principais da sua epistemologia, pautada principalmente no caráter social da ciência. A ênfase na dimensão social e no trabalho coletivo da produção do conhecimento científico faz com que Fleck seja apresentado como um dos primeiros a pensar a ciência com uma abordagem sociológica (Trenn e Merton, 1981; Schenelle, 1986, Delizoicov et al., 1999).
Opondo-se à neutralidade do modelo empirista mecanicista, Fleck trabalha com uma
concepção de sujeito coletivo, que compartilha um estilo de pensamento peculiar ao coletivo de pensamento ao qual pertence e que determina o estado do conhecimento.
Para Fleck, o ato de conhecer é uma atividade que está ligada aos condicionantes sociais e culturais do sujeito pertencente a um coletivo de pensamento, que pode ser entendido como uma comunidade de indivíduos que compartilham práticas, concepções, tradições e normas. Cada coletivo de pensamento possui uma maneira própria de ver o objeto do conhecimento e de relacionar-se com ele, que é determinada pelo seu estilo de pensamento.
O estilo de pensamento determina a maneira de pensar de um coletivo em um dado momento histórico. Os iniciantes em um coletivo são preparados, treinados, doutrinados a olhar o “mundo”, elaborar problemas e buscar as respostas em sintonia com o estilo de pensamento. Este processo determina que ao “olhar” para o objeto, o membro de um coletivo apresenta um estilo de pensamento que orienta sua prática e guia o que observar, o que olhar e como olhar (ver formativo).
Coletivos de pensamento distintos, que compartilham diferentes estilos de pensamento, ao “olharem” para o mesmo objeto, apresentam aproximações divergentes. Os problemas formulados e a maneira de enfrentá-los e de buscar resolvê-los serão diferentes. É durante o processo de formação que o iniciante aprende a “ver” os fatos de acordo com o estilo de pensamento, através da socialização de conceitos, uso da linguagem, práticas, valores e normas compartilhados por seu grupo.
A comunicação entre estilos de pensamento torna-se mais difícil à medida que as diferenças entre eles são maiores. Apesar dos diferentes estilos de pensamento serem incomensuráveis (incongruentes)2, o diálogo pode ocorrer através da tradução que, no entanto, é imperfeita, ocorrendo perdas em alguns pontos, mas ganhos em outros. Este processo de comunicação entre estilos de pensamento é um dos motivos pelo qual um novo estilo pode surgir.
A participação em vários coletivos de pensamento e o intercâmbio entre diversos estilos de pensamento pode promover mudanças teóricas e afrouxar a coerção de pensamento, contribuindo para a mudança de significados de termos e propiciando o surgimento de um novo estilo de pensamento. Indivíduos que participam simultaneamente de vários coletivos atuam como um veículo no tráfico de pensamento (Fleck, 1986), fazendo a circulação intercoletiva de idéias, fonte para a mudança ou transformação do estilo de pensamento. Apesar da ênfase no coletivo e da rejeição a uma concepção individualista, a dimensão individual não é negada. O indivíduo é concebido como um ser que se relaciona, que interage com os demais membros do coletivo.
Participar de vários coletivos, que partilham diferentes estilos de pensamento, leva o indivíduo a conviver com elementos logicamente contraditórios, alguns dos quais são encarados como crença e outros como matéria de saber. Desta forma, os elementos ficam isolados, não influenciando um no outro, o que evita um conflito psíquico.
Se os estilos de pensamento são muito distintos, então pode-se manter seu
isolamento no mesmo indivíduo, enquanto que se, pelo contrário, se trata de estilos de pensamentos mais parecidos, não é tão facilmente possível uma tal separação, pois o conflito que se estabeleceb entre os estilos de pensamento estreitamente relacionados faz impossível sua coexistência dentro do indivíduo e condena a pessoa à improdutividade ou à criação de um estilo de pensamento especial situado entre ambos
” (Fleck, 1986, p.157).
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A vida de Gregor Mendel
Johann Mendel nasceu em 1822, na província da Silésia austríaca, na cidade de Heinzendorf. Oriundo de uma família de agricultores pobres, ele conciliou os estudos com o trabalho no campo. Em 1840, aos dezoito anos de idade, matriculou-se no Instituto Filosófico da Universidade de Olmütz, onde estudou filosofia, latim, filosofia grega, matemática, física, religiões, história e história natural. Ingressou como noviço no Mosteiro de Santo Tomás, em Brünn, região da Morávia, em 1843, onde aliou os estudos teológicos à participação em cursos sobre agricultura, arboricultura e vinicultura. Ao ordenar-se padre, em 1847, adotou o nome de Gregor.
Devido a um decreto imperial de 1802, o Mosteiro Agostiniano de São Tomas em Brünn deveria fornecer professores para as escolas secundárias austríacas (Sandler e Sandler, 1985). Para conseguir o certificado de professor efetivo3, Mendel submeteu-se a uma banca da Universidade de Viena, sendo aprovado em física, porém reprovado em geologia e zoologia. A causa deste insucesso foi Mendel “não atender à terminologia técnica e por expressar idéias pessoais não condizentes com a ciência tradicional” (Freire-Maia, 1995, p.5). Esta justificativa dada à reprovação sugere que Mendel não compartilhava a linguagem, os conhecimentos e a visão de mundo compatíveis e utilizados pelos membros dos coletivos de pensamento aos quais seus avaliadores pertenciam (geólogos e zoólogos).
Para continuar seus estudos, com o objetivo de obter a habilitação para o ensino de física e outras ciências em escolas de ensino médio, Mendel foi enviado pela sua ordem religiosa à Universidade de Viena, no período de 1851 a 1853 (Freire-Maia, 1995; Mayr, 1998). Durante este período ele estudou Zoologia, Botânica, Paleontologia, Física e Matemática. No entanto, ao final do curso, novamente, não conseguiu obter o certificado de professor, por ter se desentendido com a banca examinadora. Em 1857, Mendel regressou ao mosteiro e passou a ocupar o cargo de professor substituto de ciências da escola real de Brünn, graças à influência do abade Napp, o superior do convento.
Acumulando também a função de jardineiro e hortelão, em 1857 Mendel iniciou seu
trabalho de hibridação com ervilhas (Pisum sativum). Os resultados destas experiências foram apresentados em duas conferências realizadas na Sociedade Natural de Brünn, em fevereiro e março de 1865, e publicados em 1866(4) sob o título “Versuche über Pflanzen-Hybriden” (Experiências sobre híbridos vegetais). Este artigo que seria a referência para as “leis da hereditariedade”.
Eleito abade em 1868, Mendel tentou conciliar as novas atribuições com suas pesquisas.
Estimulado por Nägeli, um prestigiado botânico da época, a realizar seus experimentos com chicória (Hieracium), Mendel obteve resultados incompatíveis com a teoria que ele havia estabelecido em seu trabalho anterior. Isto aconteceu porque a chicória se reproduz por partenogênese (5). Este trabalho foi publicado em1870. Desestimulado por esta conclusão e sobrecarregado com os encargos administrativos, Mendel abandonou seu trabalho com cruzamentos (Freire-Maia, 1995; Mayr, 1998).
O monge que posteriormente seria considerado o “pai da genética” faleceu em 1884, aos 62 anos, vítima de uma nefrite. Em 1900, três botânicos, De Vries, Correns e Tschermak, trabalhando independentemente, reconheceram a importância do trabalho de Mendel para a ciência, apontando-o como o “descobridor das leis da hereditariedade”. Para Canguilhem:
Nenhuma das categorias habituais convém ao caso de Mendel. Não se trata de um
precursor. Precursor é, sem dúvida, aquele que corre à frente de todos os seus contemporâneos, mas é também aquele que pára num percurso em que outros, depois dele, correrão até o final. Ora Mendel correu toda a corrida. Não é um fundador, pois um fundador não seria ignorado por aqueles que erguem um edifício sobre os alicerces que o fundador colocou. Na falta de uma categoria pertinente, será necessário contentarmo-nos com uma imagem, e falar da obra científica de Mendel como de uma criança nascida prematuramente, que se terá deixado morrer por despreparo para a receber?
” (Canguilhem, 1977, p. 98).
Acreditamos que uma alternativa à imagem proposta por Canguilhem é que uma obra do
porte desta de Mendel foi possível graças à sua participação em coletivos de pensamento diversos, o que contribuiu para a posterior instalação de um novo estilo de pensamento, compartilhado por um novo coletivo (geneticistas). Assim sendo, analisaremos os coletivos de pensamento de que Mendel participou.
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Coletivos de pensamento relacionados a Mendel
Mendel foi um homem bastante ativo, eclético, polivalente, que exerceu uma vasta gama de atividades e chegou a pertencer a 8 associações científicas e 26 não-científicas. Suas atividades não eram restritas ao interior do mosteiro: atuou como membro da Assembléia Regional da Morávia e ocupou o cargo de vice-diretor e diretor do Banco de Empréstimos da Moravia (Freire-Maia, 1995).
Neste sentido, podemos considerar que Mendel conviveu com diversos coletivos de pensamento.
Alguns coletivos de pensamento podem ser claramente identificados com Mendel, outros,
porém, merecem estudo e discussão mais amplos.
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Coletivo dos Religiosos
Facilmente podemos situar Mendel como membro do coletivo de pensamento da religião católica, por sua formação solidamente orientada pelos rituais e pela tradição do catolicismo e por sua obediência às suas regras. No entanto, o “lado científico” parece não ter sofrido influências da sua crença religiosa (Drouin, 1996, p. 32), o que é compatível com o pensamento de Fleck (1986)de que pessoas pertencentes a coletivos com estilos de pensamento muito diferentes manteriam um isolamento entre os conteúdos para evitar a influência de um sobre o outro. Podemos até supor que a adesão de Mendel à ordem religiosa de Santo Agostinho trouxe algumas influências no seu trabalho científico. Algumas características deste grupo religioso, ressaltadas por Freire-Maia (1995), parecem indicar que isto pode ter acontecido:
“Os agostinianos não têm uma regra severa como os cartuxos e nem mesmo como os trapistas. Estão longe de formar uma ordem contemplativa, afastada do ruído mundano e inteiramente dedicada à vida reclusa. Foi por isso que Mendel pôde se locomover livremente, ter atividades sociais, ocupar postos governamentais e bancários, ser estudante universitário, exercer o magistério fora do mosteiro e fazer viagens de passeio à Alemanha, Itália, França e Inglaterra” (Freire-Maia, 1995, p.16).
Poderíamos considerar que os agostinianos formavam um coletivo de pensamento inserido em um coletivo mais amplo formado pelos católicos.
Mendel convivia ainda com uma comunidade menor formada pelos monges do Mosteiro de São Tomás, a qual apresentava algumas particularidades como a dedicação ao ensino, o interesse pelas ciências naturais e pela agricultura, bem como o incentivo à realização de experimentos científicos na área de hibridação de plantas (Sandler e Sandler, 1985; Drouin, 1996). Poderíamos sugerir que estas características especiais mantêm relação com a região onde se situava o mosteiro e com a presença do abade Napp.
Franz Cyrill Napp (1792-1867) foi superior do mosteiro por 43 anos. Além das atividades administrativas do convento, supervisionou o sistema escolar da região durante muitos anos e foi dirigente de várias entidades agrícolas. Uma delas foi a Sociedade de Pomologia, uma instituição que visava melhorar os métodos de seleção e de hibridação de árvores frutíferas e da videira e era filial da Sociedade de Agricultura. Napp concordava com a idéia de que era necessário conhecer as leis da hereditariedade para melhorar a seleção artificial e considerava importante compreender “o que é transmitido e como”. Para isso afirmou que era necessária uma pesquisa pura, que mantivesse distancia com a agricultura. Resolveu, então, incentivar Mendel a se dedicar a este intento (Englebert-Lecomte, 1998/1999; Drouin, 1996).
É possível que a participação de Mendel no coletivo de pensamento instituído no mosteiro agostiniano de Brünn tenha influenciado o encaminhamento de sua produção científica. Para melhor analisar esta influência, situaremos o contexto social e econômico em que estava inserido o convento onde foram realizadas as famosas experiências com ervilhas.
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A Região da Morávia
Na época de Mendel, a Morávia (6) era uma pequena região agrícola do Império Austrohúngaro, que, como outras partes da Europa, passava por mudanças sociais advindas da revolução industrial.
Os ricos proprietários de terras buscavam uma “revolução agrícola”, que proporcionasse aumento na produção para satisfazer a necessidade crescente de matéria prima pelas indústrias, para alimentar os operários e para aumentar o comércio de produtos agrícolas. Eles acreditavam que isto poderia ser conseguido através da seleção ou hibridação7 das características economicamente interessantes dos vegetais e dos animais de criação.
Desde o início do século XIX, , muitas sociedades acadêmicas foram criadas na região da Morávia, a partir da iniciativa das autoridades e de particulares, com a intenção de melhorar a economia. Entre elas podemos citar a Sociedade de Agricultura, a Sociedade de Pomologia e a Sociedade de Ciências Naturais de Brünn, onde Mendel apresentou seu trabalho. Os membros destas sociedades se interessavam principalmente pela reprodução de animais e pela hibridação de plantas. Este interesse não era limitado à prática, pois eles buscavam também descobrir as regras da hereditariedade e converter a arte da reprodução em uma ciência (Sandler e Sandler, 1985).
O fato de Mendel ter vivido desde sua infância nesta região parece ter contribuído significativamente com sua produção científica e nos leva a pensar que ele participou das atividades de um coletivo de pensamento de agricultores da Morávia.
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Coletivo dos Agricultores
A família de Mendel era proprietária de um pequeno sítio na região da Morávia, onde, na época, cada camponês era obrigado a dar três horas de trabalho por semana para o senhor feudal.
Muitos autores, entre eles Jacob (1983) e Freire-Maia (1995), apontam que o convívio e o trabalho com a família de agricultores influenciaram a obra de Mendel. Cavalcanti (1965) destaca ainda a importância da aprendizagem de técnicas de enxertia e hibridação em sua infância, que depois seriam as ferramentas que ele utilizaria em suas experiências.
Deste modo, Mendel detinha o saber, as noções práticas e o golpe de vista, gestos comuns a um lavrador, o que nos sugere inseri-lo no estilo de pensamento compartilhado pelo coletivo dos agricultores. No mosteiro, ele exerceu a função de jardineiro e horticultor, e fez cursos de agricultura, arboricultura e vinicultura. Interessava-se por plantas ornamentais e pelo melhoramento dos vegetais. Conseguiu obter uma nova variedade de flor que ficou conhecida como a fúcsia de Mendel e chegou a receber uma medalha pelas suas pesquisas agronômicas (Freire-Maia, 1995).
A ligação com este coletivo de pensamento provavelmente foi responsável por uma característica, entre outras, que teve grande importância nos experimentos: a habilidade em executar a técnica de polinização artificial, crucial para seus cruzamentos entre ervilhas. A autofecundação é o modo de reprodução das ervilhas e, para garantir a origem dos cruzamentos e realizar a fecundação cruzada, Mendel utilizava a polinização artificial.
A manipulação de cruzamentos era a metodologia utilizada por dois grupos que investigavam questões ligadas à hereditariedade: hibridadores e criadores de plantas e animais.
Como estamos interessados na participação de Mendel em diversos coletivos, vamos analisar sua relação com estes grupos.
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Coletivo dos Hibridadores de Espécies ou dos Cultivadores de Plantas?
Na época de Mendel, coexistiam dois grupos de pesquisadores que se interessavam por problemas afins e utilizavam uma metodologia em comum, o cruzamento: os hibridadores e os cultivadores. Porém, pertenciam a tradições diferentes, com interesses, problemas e objetivos próprios. Constituiriam coletivos de pensamento diferentes.
Os hibridadores de espécies eram estudiosos que estavam preocupados com a produção de novas espécies. Queriam entender se, a partir do cruzamento de duas espécies diferentes, surgiria uma terceira, ou seja, para eles o problema era saber se o híbrido resultante desse cruzamento se constituiria em uma nova espécie, uma nova essência. Sua atenção estava dirigida ao problema das espécies e não dos caracteres individuais. Já haviam generalizado a idéia de que os híbridos produzidos na geração F1 apresentavam caráter intermediário e uma relativa uniformidade e que na geração F2ocorria o aumento da variabilidade. Eles não acreditavam que a herança se dava por um processo de mistura da matéria seminal dos genitores (exceto Nägeli, o que terá repercussão no trabalho de Mendel).
Entre os hibridadores de espécies podemos citar Lineu (1707-1778), Kölreuter (1733-1806), Gärtner (1772-1850) e Naudin (1815-1899).
Para alguns autores (Giordan, 1987; Hartl e Orel, 1992; Englebert-Lecomte, 2000), Mendel fez parte da tradição dos hibridadores porque utilizava a ervilha como material para experimentação e sua observação era centrada na transmissão de caracteres. Mendel considerava-se um hibridador devido ao seu trabalho com híbridos e em seu artigo de 1865 fez referências a Kölreuter, Gärtner e Wichura, importantes personalidades da tradição dos hibridadores. No entanto, o fato dele ser reconhecido como hibridador é um dos fatores apontados para a negligência com que seu trabalho foi interpretado. Seus contemporâneos imaginaram que seu trabalho fosse apenas mais um relato sobre hibridação de plantas. O trabalho de Mendel foi citado aproximadamente treze vezes em outros trabalhos sobre hibridação antes de 1900. Diferentemente dos hibridadores, que se interessavam pelo problema das espécies, os cultivadores de plantas8eram instigados pelos aspectos práticos da hereditariedade, como aumentar o rendimento e melhorar a qualidade de plantas e animais.
Entre os cultivadores da época estão Knight (1759-1853), que destacou a vantagem de utilizar ervilhas comestíveis (Pisum sativum) nos trabalhos sobre hereditariedade, e Sageret (1763-1851), que realizou cruzamentos entre variedades do melão Cucumis melo analisando cinco pares de variedade seguindo a tradição dos cultivadores que “estudavam caracteres individuais e seguiam seu destino por uma série de gerações” (Mayr, 1998, p. 723). Sageret concluiu que não havia fusão íntima entre os caracteres dos genitores, mas que ocorria uma distribuição igual ou desigual desses caracteres que são imutáveis. “Sageret não apenas confirmou o fenômeno da dominância e descobriu a segregação independente dos diversos caracteres, mas estava plenamente consciente da importância da recombinação” (Mayr, 1998, p. 724).
Vários elementos apóiam a identificação de Mendel com a tradição dos cultivadores: a preocupação com as regras da hereditariedade, o estudo de caracteres isolados, a preocupação com o melhoramento de plantas, a origem em uma família de agricultores, a ligação de seu mosteiro com a Sociedade de Agricultura.
Mayr (1998) aponta Mendel como cultivador e contesta sua inclusão no grupo de hibridadores. Ele afirma que, como discípulo de Unger e estudioso da evolução, Mendel ocupava-se com as diferenças de um único caráter e não, como os hibridadores, com a essência das espécies.
Porém, as idéias de Fleck (1986) possibilitam uma nova interpretação. A convivência de Mendel com estilos de pensamentos próximos teria provocado a criação de um outro estilo de pensamento, situado entre os hibridadores e cultivadores. Este “novo” estilo de pensamento contribuiu diretamente na produção científica de Mendel.
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Coletivo dos Cientistas
Enquanto freqüentou a Universidade de Viena, Mendel, preparou-se para ser professor e recebeu uma sólida formação científica, sobretudo no plano metodológico (Drouin, 1996). Desta forma poderíamos considera-lo como um membro do coletivo de pensamento que compartilhava o estilo de pensamento científico predominante.
A figura de um monge trabalhando no jardim de seu mosteiro pode contribuir para a construção de uma imagem de pesquisador amador, idéia que é rechaçada por Drouin(1996), ao relatar que ele dispunha no seu convento de um jardim experimental, de auxiliares para as culturas, de uma biblioteca e de intercâmbio com outros religiosos naturalistas.
Mendel trocava correspondência com outros cientistas e, além disso, sua participação na Sociedade de Ciências Naturais lhe proporcionava encontros com amadores, universitários e especialistas de diversas áreas e a possibilidade de publicação. Esta Sociedade enviava suas publicações a mais de uma centena de bibliotecas e instituições como a Royal Society e a Linnean Society. Desta forma podemos entender que Mendel buscou estabelecer comunicação entre seus pares. Portanto, alegar que a obra de Mendel foi publicada em uma revista desconhecida não procede e não explica porque sua obra foi ignorada pelos cientistas da época (Sandler e Sandler, 1985; Mayr, 1988).
Embora Fleck (1986) apresente a estrutura do coletivo de pensamento científico como um todo e dispense tratar as peculiaridades de cada especialidade, por considerá-las próximas, investigaremos aqui a ligação de Mendel com grupos ligados às disciplinas de física e de biologia como coletivos.
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Coletivo dos Físicos
Na Universidade de Viena, Mendel estudou física e foi aluno do famoso físico Christian Doppler (1803-1853). Ao atuar como demonstrador no Instituto de Física da universidade, aprendeu a tomar notas cuidadosas dos seus experimentos, para chegar a generalizações numéricas e utilizar uma rudimentar análise estatística (Mayr, 1988).
A utilização da estatística para analisar dados já era um procedimento entre os físicos e Mendel utilizou este método para analisar seus resultados dos cruzamentos entre ervilhas. Em relação ao uso da estatística, o trabalho de Mendel foi mais tarde criticado porque seus dados eram “belos” demais e sugeririam que ele teria manipulado os resultados dos experimentos (Sapp, 1990; Hartl e Orel, 1992; Drouin, 1996). A insinuação de que Mendel fraudou seus resultados é rebatida por Freire-Maia:
“O fato é que, na época de Mendel, se ensinava que, com o fim de aproximar do máximo de verdade, dever-se-iam repetir as observações e, depois, selecionar aquelas que parecessem menos contaminadas por erros. Foi isto que Mendel aprendeu, de 1851 a 1853, na Universidade de Viena. Esse método é ilegítimo hoje, mas era a ciência oficial da época” (Freire-Maia, 1986, p. 1110).
A influência do convívio com este coletivo de pensamento parece relacionar-se com a
escolha da metodologia, com a utilização da estatística e principalmente com o emprego do método experimental na procura de uma lei geral, que era característico da física. Mendel planejou seus experimentos tendo em mente uma teoria (hipótese) que queria testar (Mayr, 1998). Inclusive, a estrutura do artigo de 1865 é similar ao do estilo de pensamento dos físicos do período: os objetivos são claramente definidos, os dados são apresentados com concisão e as conclusões são formuladas com cautela. O trabalho de Mendel é considerado um exemplo clássico da literatura científica (Mayr, 1998).
Segundo Mayr (1998), a tradição dos físicos contemporâneos a Mendel recomendava a procura de uma lei geral, e como suas leis adequavam-se às ervilhas e não à chicória, ele ficou em dúvida se suas descobertas seriam válidas para todas as espécies de plantas. Desestimulado por estes resultados e eleito abade de seu mosteiro em 1871, Mendel abandonou seu trabalho com cruzamentos.
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Coletivo dos Biólogos
Drouin (1996) argumenta que muitos autores aproximam Mendel da investigação biológica por sua relação com a horticultura. Sapp (1990) afirma que os experimentos de Mendel são centrais para a moderna biologia. Assim, neste trabalho, relacionaremos Mendel com o coletivo dos biólogos, pois o problema por ele formulado era do campo da biologia. A escolha do material para a experiência, os procedimentos específicos, os cuidados, a prática e os conceitos foram trazidos de um estilo de pensamento ligado aos biólogos, mais particularmente dos botânicos cultivadores de plantas e hibridadores.
Em Viena, Mendel teve cursos de zoologia, paleontologia e botânica, disciplinas da área da biologia. Especial destaque deve ser dado ao fato de que seu professor de botânica foi Franz Unger, um defensor da teoria da evolução. Unger (1800-1870) propôs que a diversidade tinha origem interna e não externa, refutando a idéia de que o surgimento de novas espécies era devido somente à influência de fatores externos. Ele acreditava que a solução do problema da origem das espécies viria através do estudo das variações.
Interessado na evolução desde a época em que foi aluno de Unger e influenciado pelas idéias do mestre, Mendel acreditava que as suas hipóteses deveriam estar em conexão com a teoria da evolução das espécies(Mayr, 1998). Mendel leu o livro Origem das Espécies de Darwin (1863) e fez várias anotações sobre ele (Freire-Maia, 1995; Hartl e Orel, 1992). Aparentemente, Mendel aceitava a idéia de evolução e de seleção natural. Neste ponto, as idéias de Mendel e Darwin se aproximavam, mas em muitos outros aspectos elas se distanciavam.
Neste período, segunda metade do século XIX, o problema da evolução era uma das principais discussões da biologia (Sandler e Sandler, 1985) e a teoria de Charles Darwin recebia grande atenção. Consideraremos aqui que Darwin pertencia ao coletivo de pensamento dos biólogos e buscaremos relações entre ele e Mendel.
Em seu livro Variação de Animais e Plantas sob Domesticação, publicado em 1868, após o trabalho sobre cruzamentos em ervilhas de Mendel, Darwin defendia a teoria da pangênese para explicar a hereditariedade. De acordo com esta teoria, a transmissão das qualidades hereditárias se dava através de gêmulas (partículas diminutas) existentes nas diversas partes do corpo, que eram transportadas para os órgãos reprodutores. Na fecundação, a formação dos híbridos era devida à mistura das gêmulas parentais (herança miscível). Darwin foi criticado com base no fato de que, após as misturas iniciais, tudo se transformaria em uma uniformidade, já que não haveria uma fonte de variação. Para resolver este impasse, ele recorreu à herança dos caracteres adquiridos, (Rose, 2000).
O enfoque de Darwin, ao utilizar o recurso da herança dos caracteres adquiridos, era
diferente do de Lamarck (1744-1829), outra importante referência para a área. Pbara o primeiro, o processo evolutivo estava ligado à seleção natural enquanto que para o segundo, o mecanismo de adaptação de sua teoria da evolução baseava-se numa forma de esforço vital (Rose, 2000).
Mendel não compartilhava da idéia de herança adquirida. Também discordava da idéia da mistura ou combinação dos caracteres dos progenitores, e por isso estudou a expressão dos caracteres tomando-os individualmente (Gros, 1989). Mendel, que conhecia os estudos dos cultivadores de plantas e compartilhava de suas idéias, acreditava que os caracteres individuais não se misturavam durante a fecundação, sendo transmitidos à geração seguinte com quantidades discretas e de forma independente. Ao afirmar que a variação era brusca e descontínua, Mendel contrariava a crença, compartilhada por Darwin e muitos outros biólogos da época, na variação gradual e contínua (Mayr, 1998) e na mistura dos caracteres.
Durante sua correspondência com Nägeli, botânico famoso, Mendel comentou suas divergências em relação à mistura dos caracteres e enviou-lhe uma cópia da publicação de seu trabalho. Parece que Mendel escolheu mal seu interlocutor, que também tinha uma proposta de teoria da hereditariedade, baseada na herança miscível. Aceitar o trabalho de Mendel significaria para Nägeli refutar suas próprias idéias. Poderíamos dizer, com Fleck, que as concepções e o sistema de idéias de Nägeli e Mendel eram incompatíveis.
Para Darwin e muitos outros contemporâneos de Mendel, as discussões sobre hereditariedade estavam inseridas nos estudos de outras áreas como reprodução, embriologia, fisiologia e evolução, sem constituir um campo de interesse isolado. Algumas teorias da hereditariedade já haviam sido propostas, mas visando apenas complementar alguma teoria geral(l9).
Nesta perspectiva, o trabalho de Mendel poderia ser encarado como parcial e incompleto (Sandler e Sandler, 1985). Seu afastamento do estilo de pensamento da época, talvez tenha sido uma das razões para a desconsideração do trabalho de Mendel por seus contemporâneos.
Outro aspecto que distancia Mendel de Darwin e de outros naturalistas é o da concepção dos experimentos. Enquanto estes consideravam que a natureza realizava as experiências (Jacob,1983), Mendel planejava seus experimentos, determinando e manipulando os cruzamentos desejados.
Mendel não foi o único a fazer uso da estatística nesta área. Francis Galton, em 1869, também usou um tratamento matemático em seu trabalho sobre a hereditariedade. Apesar da estatística ser pouco utilizada pelos biólogos daquela época, não sendo um método predominante neste estilo de pensamento, esta não pode ser considerada a causa única da pouca repercussão do trabalho de Mendel. No século XIX, havia a tendência à matematização na ciência, sendo as idéias e os métodos matemáticos bem aceitos (Sandler e Sandler, 1985).
Mesmo utilizando conceitos da biologia e trabalhando com um problema relacionado a este campo, as atitudes, procedimentos e concepções de Mendel se diferenciavam, em vários aspectos, do estilo de pensamento predominante entre os biólogos. Sobre a relação de Mendel com a biologia, Jacob (1983) afirmou que sua obra concilia-se com a física de sua época mas não exerce a menor influência sobre a maneira de seus contemporâneos fazerem biologia. Podemos supor que isto teria contribuído para a negligência em relação ao seu trabalho.
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Coletivo dos Metereologistas
Mendel era tido como um homem meticuloso e sistemático. Durante 40 anos, fez a leitura, três vezes por dia, dos aparelhos colocados a várias distâncias dentro da área do mosteiro, o que o obrigava a andar cerca de 6 quilômetros diários. Chegou a inventar um aparelho para observar o sol e assim determinar a influência das variações solares sobre o clima (Freire-Maia, 1995).
Devido ao seu interesse por metereologia, Mendel escreveu nove artigos (Drouin, 1996,
p.34). Assim, ele produziu mais artigos nesta área do que em relação a seus experimentos de cruzamentos de plantas (dois trabalhos publicados). Isto nos leva a considerá-lo um membro do coletivo de pensamento dos metereologistas.
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Coletivo dos Apicultores
Como apicultor, Mendel observava cuidadosamente várias colméias que mantinha no
mosteiro e relatava suas observações na Associação dos Apicultores da Morávia. Fez várias observações interessantes sobre a vida das abelhas e sugeriu aos apicultores a seleção pelo uso das colônias melhores e mais fortes (Kerr, 1995).
Freire-Maia (1995) aponta que, em 1950, Zirke (historiador da genética) defendia a hipótese de que o trabalho de Mendel foi fortemente influenciado pela pesquisa com abelhas do abade Johann Dzierzon. Dados obtidos nos experimentos de Dzierzon lhe sugeriram que as fêmeas virgens produziam dois tipos de gametas em igual proporção. Se nos machos ocorresse a mesma coisa, a relação para os descendentes seria 1:2:1, e com dominância completa 3:1. Considerando esta idéia de Zirke, podemos pensar que o trabalho de Dzierzon pode ter sido a fonte de inspiração para Mendel quando elaborou a hipótese para a realização de seus experimentos com ervilhas.
Mendel provavelmente participou de vários outros coletivos de pensamento. Destacamos aqui aqueles sobre os quais encontramos informações e que parecem manter relação com o trabalho que deu origem a seu reconhecimento como o “pai da genética”.
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Considerações finais
A utilização das categorias de Fleck na análise do trabalho de Gregor Mendel permite
evidenciar a influência do contexto social e cultural no desenvolvimento de um sistema de idéias.
As idéias mendelianas, tradicionalmente apresentadas como contribuição isolada de um indivíduo, nesta análise foram encaradas como fruto da interação entre um sujeito cognoscente (Mendel), um objeto (experimentos com plantas) e um estado de conhecimento (as idéias de diferentes coletivos de pensamento com os quais convivia).
A apresentação do desenvolvimento do trabalho de Mendel em relação à sua participação em vários coletivos de pensamento sugere que este fator contribuiu para que ele encarasse a hereditariedade sobre uma nova perspectiva. Ele teve um olhar diferente para o problema da herança dos caracteres. Com isso poderíamos dizer que Mendel lançou as bases para o que viria se constituir um novo estilo de pensamento. Para existir um estilo de pensamento seria necessária a existência de um coletivo de pensamento, o que não aconteceu enquanto Mendel era vivo. Mendel não conviveu com uma comunidade que concebia o problema da hereditariedade da mesma forma e que compartilhava as mesmas concepções, práticas e tradição. Isto só ocorreu por volta de 1900, dezesseis anos após sua morte, quando três pesquisadores (De Vries, Correns e Tschermak)trabalhando isoladamente em países diferentes reconheceram a importância de seu trabalho. Mendel finalmente conseguia seus interlocutores, vindo então a se instaurar um novo estilo de pensamento.
Acreditamos que a utilização da epistemologia de Fleck na interpretação da história da biologia pode ser útil na elaboração de materiais de consulta para professores que desejem conhecer a gênese de um conhecimento científico. Esperamos ter contribuído, com este exemplo de história das leis de Mendel, para o ensino de ciências em uma perspectiva histórica.
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Referências
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Notas
(1) Os livros examinados foram AMABIS, J. M. e MARTHO, G.R., 1994; FONSECA, A, 1995; LINHARES e GEWANDSZNAJDER, 1993; ALBUQUERQUE, (1993).
(2) Delizoicov e colaboradores (1999) esclarecem que o termo incomensurabilidade utilizado por Fleck aparece em seu
artigo em polonês (1927) podendo significar incongruência (niewspólmiernosc), mas na sua monografia em polonês, ele utiliza a palavra incomensurável (inkommensurabel).
(3) Este certificado era a qualificação necessária para trabalhar em escolas estatais (Freire-Maia, 1995).
(4) O trabalho foi publicado com a data de 1865.
(5) Partenogênese: desenvolvimento de um novo indivíduo a partir de um óvulo não fertilizado (Burns, G. Genética - Uma introdução à hereditariedade. Guanabara, Rio de Janeiro, 1986).
(6) Hoje, a Morávia é uma província da República Tcheca.
(7) É o cruzamento entre duas raças de uma mesma espécie vegetal ou animal ou entre espécies diferentes (Englebert- Lecomte, 1998/1999).
(8) Também chamados por Mayr (1998) de criadores de plantas práticos.
(9) Mayr afirma que a primeira teoria geral da hereditariedade e do desenvolvimento foi proposta pelo filósofo Herbert Spencer (1864).

quarta-feira, 11 de março de 2009

“O impacto do manuscrito de Wallace de 1858.” - por Marcio Horta

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Artigo publicado em:
HORTA, Marcio Rodrigues. “O impacto do manuscrito de Wallace de 1858.” Scientiæ Studia, Vol. 1, n.2, p. 217-229, 2003
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"Em fevereiro de 1858, o naturalista Alfred Russel Wallace encontrava-se na ilha de Gilolo capturando insetos para vender, quando uma doença o impediu de continuar trabalhando.
O ofício de entomólogo financiava seu verdadeiro objetivo: levantar dados para fundamentar uma teoria sobre a origem das espécies, motivação que o conduzira da Inglaterra para a floresta amazônica e, naquele momento, para o arquipélago Molucas (região da Nova Guiné, Oceania). Durante o repouso forçado, ele pôs-se a refletir sobre a natureza viva e, subitamente, ocorreu-lhe uma intuição, assim descrita em recordações datadas de 1905:
Naqueles dias eu sofria de um ataque agudo de febre intermitente; todo dia (durante os acessos de frio e posterior calor) tinha de repousar por algumas horas, tempo durante o qual nada tinha a fazer senão pensar sobre alguns assuntos que então me interessavam particularmente. Um dia algo fez-me recordar os Princípios de população, de Malthus, que eu havia lido doze anos antes; pensei em sua clara exposição dos ‘impedimentos positivos ao aumento’ – doença, acidentes, guerra e fome – que mantêm a população das raças selvagens tão abaixo da média das pessoas civilizadas. Então, ocorreu-me que essas causas (ou suas equivalentes) também estão continuamente agindo no caso dos animais e, como eles usualmente reproduzem-se muito mais rapidamente do que os humanos, a destruição anual devido a elas deve ser enorme para controlar a população de cada espécie (posto que os animais, evidentemente, não aumentam regularmente de ano para ano, pois de outra maneira o mundo de há muito teria sido densamente povoado pelos que procriam mais rapidamente). Pensando vagamente sobre a enorme e constante destruição que isso implica, ocorreu-me formular a questão: por que alguns morrem e alguns vivem? E a resposta foi claramente que, no todo, o melhor adaptado vive. ... Então, subitamente me lampejou que esse processo auto-ativo necessariamente melhoraria a raça, porque a cada geração o inferior inevitavelmente seria destruído e o superior permaneceria – ou seja, o melhor adaptado sobreviveria. ... Quanto mais pensava nisso, mais ficava convencido de que eu havia finalmente descoberto a tão buscada lei da natureza que resolve o problema da origem das espécies. Durante a hora seguinte, pensei nas deficiências das teorias de Lamarck e do autor dos Vestígios, e vi que minha nova teoria suplementava essas visões e obviava todas as dificuldades importantes.” (Correspondence, 7, p. 512).
O jovem Alfred Wallace

Segundo seu próprio relato, Wallace esperou ansiosamente pelo término do ataque de febre que o acometia a intervalos regulares para poder escrever sobre o assunto:

Comecei naquela mesma noite, e nas duas seguintes escrevi o trabalho cuidadosamente para enviá-lo a Darwin pela próxima mala postal, que sairia dentro de um ou dois dias.” (apud Ferreira, 1990, p. 50)

O manuscrito intitulado “Sobre a tendência das variedades a afastarem-se indefinidamente do tipo original” foi, então, enviado anexo a uma carta para o vetusto cientista Charles Lyell, via Charles Darwin. O original de Wallace perdeu-se; porém, após a comunicação conjunta que desencadeou (de Darwin e Wallace na Sociedade Lineana, em julho de 1858), foi impresso no Journal of Proceedings – Zoology, edição de março de 1859 (cf. Correspondence, 7, p. 512).
Wallace em 1862

A carta que o conduziu até Lyell também desapareceu; não obstante, algo do seu conteúdo está nas recordações de Wallace:

Escrevi uma carta para Darwin, na qual disse esperar que a idéia fosse tão nova para ele quanto era para mim e que ela fornecia o fator perdido para explicar a origem das espécies. Perguntei-lhe se ele a considerava suficientemente importante para mostrá-la a Sir Charles Lyell, que tanto havia apreciado meu artigo anterior.” (Correspondence, 7, p. 513)

Charles Lyell

A justificativa do desejo de chegar até Lyell era pertinente, pois Wallace fora informado por Darwin, em fins de 1857, que o reputado cientista apreciara seu artigo “Sobre a lei que regula o aparecimento de novas espécies”, publicado em setembro de 1855 nos Annals and Magazine of Natural History.(*1) A satisfação de Wallace por aproximar-se do grupo central dos naturalistas ingleses pode ser sentida em suas palavras, escritas para Bates em janeiro de 1858:

Estou muito contente devido a uma carta de Darwin, na qual ele diz que concorda com ‘quase todas as palavras’ do meu artigo. Ele está agora preparando seu grande trabalho sobre ‘Espécies e Variedades’, para o qual tem coletado material faz vinte anos. Ele pode salvar-me do problema de escrever mais sobre minha hipótese, ao provar que não há diferença na natureza entre a origem das espécies e a das variedades; ou pode trazer-me problemas se chegar a outras conclusões. Mas em todos os casos seus fatos dar-me-ão sobre o que trabalhar.” (Correspondence, 7, p. 107, n. 2).(*2)

Charles Darwin

O que Wallace não sabia (e que a correspondência de Darwin revela) é que Lyell, após ler o artigo de 1855, começou a pressionar Darwin a publicar sua teoria, temendo que o amigo fosse antecipado; o jovem naturalista pareceu-lhe antes um perigoso concorrente e candidato à prioridade do que um novo sócio para o clube. Assim, Lyell escreveu para Darwin em 01/05/1856: “Gostaria que você publicasse mesmo uma pequena fração dos seus dados, pombos se faz favor, para apresentar a teoria, que passe a ter uma data para ser citada e compreendida” (apud Ferreira, 1990, p. 41). Apressado por Lyell, pouco depois Darwin começou a preparar um resumo de sua teoria para publicação; contudo, interrompeu esse trabalho em seguida, pois não estava convencido da importância do artigo de 1855 de Wallace. Em sua cópia anotou:
185 – artigo de Wallace: Lei da Distr. Geogr. – nada verdadeiramente novo”(apud Papavero & Llorente-Bousquets, 1994, p. 89).

Na percepção de um pequeno grupo de especialistas já não se tratava apenas de postular a evolução das espécies, pois, naqueles dias, “as provas apontando para a evolução do homem haviam sido acumuladas por décadas e a idéia de evolução já fora amplamente disseminada” (Kuhn, 1987, p. 214). O verdadeiro problema era o de chegar a uma explicação estritamente naturalista e convincente de como ela ocorreu. Quanto a essa exigência característica da ciência, Darwin tinha consciência de que seus precursores mais importantes não haviam logrado êxito (cf. Horta, 1998, cap. 2). Num esboço autobiográfico, escrito pouco antes de sua morte, ele apontou os limites da Zoonomia (livro escrito por Erasmus Darwin, seu avô):

Essa obra me havia causado grande admiração quando a li pela primeira vez; relendo-a 14 ou 15 anos depois, fiquei bastante decepcionado com a enorme proporção de idéias teóricas, em relação ao pequeno número de fatos passíveis de demonstrá-las.” (Darwin, 1988, p. 21)

Além disso, era corrente a avaliação de que a hipótese do uso e desuso, de Lamarck, não dava conta dos fatos e sofria de pequeno poder de persuasão; Chambers, o autor anônimo dos Vestígios da criação, tornou popular o tema da evolução, mas sustentou-o apenas com a força da retórica.
Ao receber a carta e o manuscrito enviados de Ternate por Wallace, Darwin finalmente compreendeu a gravidade de sua situação e o quanto poderiam custar as duas décadas em que protelou a publicação de sua teoria evolucionista por seleção natural; embora trabalhasse incansavelmente no tema, com investidas diretas e indiretas (coletando e produzindo fatos em grande quantidade, organizando entendimentos auxiliares para a teoria principal, escrevendo artigos e livros, correspondendo-se com naturalistas de todo o mundo, desenvolvendo uma couraça conceitual própria etc.), sempre hesitou em publicar suas teses com provas incompletas (e também por temer a virulência da reação criacionista, especialmente no terreno social).(3) Naquele instante, Darwin acreditou-se antecipado, pois a indagação sobre como as espécies se originam obtivera uma resposta filosoficamente adequada e plausível! Prontamente participou ao seu amigo Lyell do ocorrido, e remeteu-lhe a famosa carta abaixo:

Para Charles Lyell,
Em 18 [de junho de 1858].
Down, Bromley, Kent
Caro Lyell:

Há cerca de um ano atrás recomendaste que eu lesse um artigo de Wallace nos Annals, que havia te interessado; e como eu estava escrevendo para Wallace (e sabia que isso agradaria muito a ele), então eu lhe contei. Hoje ele me enviou um anexo e solicitou que te fosse encaminhado. Parece-me leitura muito digna. Tuas palavras, que eu seria antecipado, tornaram-se verdadeiras com força redobrada. Disseste isso aqui, quando muito brevemente te expus minha tese de que a ‘seleção natural’ depende da ‘luta pela existência’. Nunca vi coincidência mais notável. Se Wallace possuísse meu esboço, escrito em 1842, não poderia ter feito um resumo melhor! Seus próprios termos agora figuram como títulos de meus capítulos.
Por favor, retorne-me o artigo; ele não diz se deseja que eu o publique, mas é claro que imediatamente escreverei e me oferecerei a enviá-lo a algum periódico.
Então toda minha originalidade, qualquer que seja seu valor, será esmagada.
Meu livro, não obstante, se jamais possuir qualquer valor, não será prejudicado, pois todo o seu labor consiste na aplicação da teoria.
Espero que aproves o esboço de Wallace, para que eu possa levar a ele o que disseres.

Estimado Lyell, do mais verdadeiramente teu,

C. Darwin
” (Correspondence, 7, p. 107).


Os editores têm datado esta carta em 18 [de junho de 1858], baseando-se no endosso de Lyell (Darwin escreveu apenas o dia na carta; mês e ano foram escritos a lápis por Lyell, quando do recebimento) (cf. Ferreira, 1990, p. 53). Contudo, esta data tornou-se objeto de debate. Henry L. McKinney sustentou em 1972 que Darwin recebeu a carta e o manuscrito de Wallace em 03/06/1858, no mesmo dia em que outra carta de Wallace (para Frederick Bates, datada de 02/03/1858) chegou à Inglaterra (com a ordem de ir “via Shouthampton”, ela passou por Singapura em 21/04/1858 e chegou a Londres em 03/06/1858) (cf. Correspondence, 7, p. 18). Arnold C. Brackman, um jornalista americano, manteve em 1980 que Darwin não guardou as cartas de Wallace recebidas de 1855 a 1858 e sugeriu que teriam sido queimadas, talvez por seu filho Francis (cf. Ferreira, 1990, p. 61). John L. Brooks lançou a suspeita em 1984 de que Darwin recebera a carta de Wallace ainda antes, valendo-se de registros do Correio das Índias Orientais Holandesas e da Companhia Peninsular & Oriental e, assumindo que a carta para Darwin foi postada com a de Bates, sustentou que ela deve ter chegado ao Correio Geral de Londres em 14/05/1858 “via Marselha” ou em 20/05/1858 “via Southampton”.
Darwin, ao retê-la por um mês, teria tido tempo de revisar o capítulo VI da Seleção natural, livro que acabou não publicando; após o episódio, teria escrito o capítulo IV de A origem das espécies valendo-se do pensamento de Wallace sem citá-lo devidamente (cf. Ferreira, p. 60).(4) Então, em 18/06/1858, teria enviado o escrito de Wallace para Lyell (cf. Correspondence, 7, p. 18). Entre nós, destaco o compromisso com esse debate tanto de Papavero quanto de Ferreira.
Todavia, com a publicação da correspondência completa de Darwin (particularmente do sétimo volume, no início dos anos noventa, que cobre os anos de 1858 e 1859), as acusações contra Darwin acabaram enfraquecidas. A intriga de Brackman (quanto à suposição de que algum Darwin teria intencionalmente destruído as cartas de Wallace, particularmente a de 18/06/1858) desfez-se, pois sabe-se que Darwin remeteu a carta e o manuscrito de Wallace para Lyell e que muitas cartas Darwin-Wallace foram conservadas; outras tantas cartas de e para Darwin perderam-se, de variados remetentes – a história feita através de missivas tem esse traço. Na ausência do envelope da carta de Wallace ou de qualquer evidência decisiva para a data da chegada da carta em Down, Barbara Beddall concluiu, em 1988, que o debate sobre a falsidade de Darwin é essencialmente insolúvel (cf. Correspondence, 7, p. 18); não obstante, é relevante observar que os registros de correio estudados por Brooks apontam que uma carta das Índias Orientais chegou a Londres em 17/06/1858 (de Londres a Down as cartas levavam um dia para ser entregues), o que torna perfeitamente possível que a data de 18/06/1858 seja honesta (cf. Correspondence, 7, p. 18).
Charles Darwin

Ademais, segundo Frederick Burkhardt, editor da correspondência completa de Darwin, as cartas de meados de maio à metade de junho de 1858 fornecem alguma evidência circunstancial em favor da data tornada oficial (cf. Correspondence, 7, p. 18). Ele discutiu vários assuntos nesse período em seu tom normal, sem mostrar qualquer sinal de ansiedade; mas as epístolas também mostram, vividamente, quão aflito ele ficou nos dias imediatamente seguintes ao recebimento da carta de Wallace. Assim, em 18 de maio [de 1858],(5) numa carta para Syms Covington, Darwin diz que a publicação de sua teoria das espécies deve levar algum tempo ainda; em 16 de maio [de 1858], ele arranja um encontro com Hooker para discutir seu manuscrito sobre gêneros grandes e pequenos, afirmando não estar com nenhuma pressa em face a um juiz tão severo; em 18 [de maio de 1858], novamente diz a Hooker que não havia pressa alguma no mundo para o seu manuscrito; em 8 de junho [de 1858], afirma a Hooker que o tema dos gêneros ainda domina sua mente. Essas evidências não se ajustam ao humor de alguém aflito, como Darwin claramente estava em sua carta para Lyell, com a perspectiva de perder a prioridade no trabalho de sua vida. Nesse contexto, torna-se pouco verossímil a acusação de que ele pôs-se a escrever febrilmente após o recebimento da missiva de Wallace, adicionando quarenta e uma folhas ao tratado Seleção Natural e suprimindo um capítulo todo; Darwin deve tê-lo feito antes do recebimento da carta, como parte de seu trabalho normal. Por fim, acontecimentos familiares traumáticos (e bem documentados) levaram-no a suspender sua atividade pouco após a chegada da carta, fazendo com que estivesse ausente da reunião da Sociedade Lineana que o apresentou como co-autor da tese da evolução por seleção natural, fato que seria impensável para alguém tão preocupado com os lauréis a ponto de agir com falsidade para se apropriar do pensamento de Wallace. Com efeito, em 18/06/1858 sua filha mais velha, Henrietta Emma, doente desde o início do mês, foi atacada por difteria (na ocasião, doença pouco conhecida e assustadora); dias depois, a babá e Charles Walring Darwin, de um ano e meio, manifestaram a febre escarlatina que grassava na cidade – a saúde do bebê deteriorou rapidamente e ele morreu em 28/06/1858; temendo por sua família, Darwin fugiu para uma ilha, até meados de agosto. Assim, compreende-se por que Darwin não pôde dar a devida atenção ao anúncio de suas idéias, não comparecendo ao encontro da Sociedade Lineana de 01/07/1858 (cf. Correspondence, 7, p. 19).
Asa Gray

Em boa medida vinculada à polêmica sobre a desonestidade de Darwin, a consideração sobre a importância do manuscrito de Wallace variou. A primeira avaliação, feita pelo próprio Wallace, pretendia que o mérito do seu artigo de 1858 fosse principalmente o de ter levado Darwin a agir, conduzido ao anúncio das respectivas teorias de Darwin & Wallace e induzido à composição e publicação, em novembro de 1859, de A origem das espécies por meio da seleção natural, um marco na história da biologia evolucionista. Na carta de 29/05/1864, endereçada a Darwin, Wallace faz essa avaliação pela primeira vez:

Quanto à própria teoria da seleção natural, devo sempre considerá-la como sendo de fato sua e só sua. Você a trabalhou em detalhes (que nunca pensei) anos antes de eu ter um raio de luz sobre o assunto, e meu artigo nunca teria convencido ninguém ou seria visto apenas como uma especulação engenhosa, enquanto seu livro revolucionou o estudo da história natural ... todo o mérito que reclamo é a relevância de ter induzido você a escrever e publicar imediatamente.” (apud Cohen, 1985, p. 603, n. 5).

Bem mais tarde, em 1898, após descrever os eventos que conduziram à comunicação conjunta de 1858, Wallace afirma na mesma linha:
a teoria da seleção natural ... recebeu pequena atenção até que o grande livro de Darwin apareceu no fim do ano seguinte, marcando época.” (apud Cohen, 1985, p. 603, n. 5
Wallace

A proporção dos méritos vinculou-se, nesse primeiro momento, ao sucesso relativo da estratégia de apresentação e popularização dos trabalhos. Darwin muito cedo convenceu-se da necessidade de produzir um livro demonstrativo, extenso, profuso em provas e argumentos e dirigido ao público em geral. Wallace, por sua vez, fragmentou sua argumentação sobre o assunto em pequenos artigos escritos para especialistas, e sua importância acabou parecendo secundária a ele próprio. Num segundo momento, em virtude da reação do próprio Darwin (expressa na carta para Lyell de 18/06/1858) e convictos de sua falsidade, alguns estudiosos passaram a dar uma importância cada vez maior ao manuscrito de 1858 de Wallace, a ponto de considerar que o maior mérito, com efeito, pertenceu a ele, e que Darwin fora efetivamente antecipado.(6) Segundo Papavero (cf. Papavero & Llorente-Bousquets, 1994, p. 91), Darwin chegou à teoria da seleção natural, mas não entendeu a origem das espécies:

O ensaio de Wallace [é] incomparavelmente melhor escrito e desenvolvido do que os ‘resumos’ de Darwin ... o ‘princípio da divergência’ de Darwin não ofereceu nenhuma explicação para o ‘desvio contínuo’. Não explicou nem a formação de linhagens nem de ‘morfoespécies’. Darwin disse apenas que: ‘... a prole variada de cada espécie tentará (e só alguns conseguirão) ocupar tantos e tão diversos lugares na economia da natureza quantos sejam possíveis’. Essa conjectura contraria a experiência de Wallace ... [e] só poderia ser vista por Wallace como uma especulação de alguém que conhecia muito pouco da variação que ocorria na natureza.” (Papavero & Llorente-Bousquets, 1994, p. 105).

Ferreira também critica Darwin e aceita a tese da desonestidade, amplificando a importância do texto de 1858 de Wallace:

Desde 1844 ... Darwin tinha escrito um esboço de uma teoria da evolução por seleção natural, com a sobrevivência diferencial de indivíduos mais aptos. Alertado por Lyell sobre a importância da ‘Lei de Sarawak’ de Wallace, em 1856 começa a escrever seu livro, Seleção natural. Quando escreve a carta a Asa Gray, em 5 de setembro de 1857, ele propõe um ‘princípio de divergência’ que contudo não explica a divergência progressiva dos registros fósseis. Essa teoria ‘incompleta’ ele tinha incluído no capítulo VI do livro em 31 de março de 1858.
Em algum momento entre 16 de maio e 12 de junho Darwin recebeu a correspondência de Wallace. Brooks propõe que foi a 18 de maio, quando escreveu a carta para Lyell ... Darwin percebeu de imediato a força do argumento de Wallace, e quanto mais pensava mais via como sua teoria ainda era incompleta. Releu cuidadosamente o artigo ‘Sobre a lei que regula a introdução de novas espécies’... Foi então que Darwin escreveu as 41 páginas extras que inseriu no manuscrito do livro grande (Ferreira, 1990, p. 62).
Em seguida, Ferreira sustenta que “no artigo de Wallace o problema da divergência está completamente resolvido
” (Ferreira, 1990, p. 51).
Charles Darwin: Antiética, desonestidade e qualidade inferior.

Essa posição está perfeitamente alinhada com a afirmação de Ferreira, na Apresentação de seu livro, de que:
esses últimos anos ... foram também testemunhas de uma revisão na historiografia da teoria da evolução biológica. Tornou-se claro que a contribuição de Alfred Russel Wallace foi muito mais importante do que até então se pensava” (Ferreira, 1990, p. 15).

Wallace

Não obstante, presentemente percebe-se uma clara tendência ao equilíbrio, a um escrutínio menos apaixonado das idéias que busca principalmente levantar as semelhanças e as diferenças entre as teorias de Darwin e Wallace. Mais “darwinista”, Peter Bowler considera que:

A interpretação clássica do artigo de 1858 de Wallace é que ele representa uma descoberta independente do mecanismo darwiniano de seleção natural; o texto certamente contém a descrição de uma forma de seleção natural, aparentemente próxima o suficiente para persuadir o próprio Darwin de que ele havia sido antecipado.
Mas um bom número de historiadores tem argumentado que uma leitura atenta do manuscrito sugere maiores diferenças nos modos pelos quais Darwin e Wallace formularam a idéia ... A teoria da seleção natural de Darwin depende da luta pela existência entre variantes individuais dentro da mesma população (mas o termo ‘variedade’ foi freqüentemente utilizado para denotar o que agora chamamos de subespécies – populações locais diferindo em algum modo bem marcado do resto da espécie). Minha posição é que uma leitura atenta do artigo sugere que Wallace estava pensando em competição entre variedades neste ponto; ele não oferece qualquer explicação sobre como as variedades são formadas, mas argumenta que, uma vez formadas, elas competirão umas com as outras até restar apenas uma, após o que elas novamente dividir-se-ão em variedades para repetir o processo. Significativamente, Wallace não viu qualquer ligação entre o mecanismo que apresentou e a seleção artificial dos criadores – por contraste, um fator chave que forneceu a Darwin uma visão da seleção individual na natureza. Observe-se também que, na versão reimpressa depois de Wallace ter lido Darwin, foram adicionados subtítulos que tendem a realçar a impressão de que ele estava pensando em seleção individual (Bowler, 2003) ... a similaridade entre a versão de Darwin da ‘seleção natural’ e o princípio que Wallace propôs neste ensaio tem sido superestimado por muitos escritores. Gostaria de sugerir que a apresentação de Wallace foi, de alguma forma, superior à de Darwin. Wallace não se preocupou com o problema da variação do mesmo modo que Darwin – ao invés, tomou a variação como admitida. Ele também colocou muito maior acento na ação contínua e rigorosa do princípio como uma explicação de por que não se vê nenhuma forma desequilibrada e pobremente adaptada ... Mais importante, Wallace evitou personificar o princípio, tanto que ele permaneceu um processo, mais do que uma força. Isso permitiu-lhe evitar o pensamento teleológico, que ainda encantava adeptos da ‘seleção natural’ de Darwin ... É lugar comum que Wallace, através de sua vida, foi um ‘selecionista’ mais estrito que Darwin. Esta diferença já está refletida neste primeiro ensaio de Wallace, que por isso tem uma estrutura mais clara que qualquer dos escritos de Darwin (como o geólogo Charles Lyell apontou)
.” (Reiss, 2003)

Nos dois comentaristas detectam-se preferências, sem dúvida; porém, advertidos quanto às paixões extremas que marcaram os anos setenta e oitenta, de forma comedida prendem-se às teses e guardam prudente distância das acusações que, salvo fato novo, parecem destinadas à história da historiografia. A estatura científica de Wallace nada perde com isso – pelo contrário, pode ser aferida de forma um pouco mais independente, sem necessitar do rebaixamento de Darwin. Por fim, com o objetivo de disponibilizar ao leitor do nosso idioma um ensaio da maior importância na história e filosofia da ciência biológica, segue a tradução do texto de 1858 do notável pensador inglês.

Sepultura de Alfred Russel Wallace

Referências bibliográficas

1. Primária
DARWIN, C. Correspondence, 10 vols. Ed. de F. Burkhardt & S. Smith. Cambridge, Cambridge University Press, 1985-1997 (Correspondence).
_______. “Ensaio autobiográfico”. In: Origem das espécies. São Paulo, Itatiaia & Edusp, 1988, p. 17-29.
_______. The origin of species by means of natural selection. Chicago, University of Chicago Press, 1978.

2. Secundária
BOWLER, P. “Comment”. In: On the tendency of varieties to depart indefinitely from the original type. URL: http://www.wku.edu/~smithch/wallace/S043.htm, obtido em 30/04/2003.
COHEN, B. Revolution in science. Cambridge, Harvard University Press, 1985.
FERREIRA , R. Bates, Darwin, Wallace e a teoria da evolução. São Paulo, Editora da UNB & Edusp, 1990.
HORTA, M. Um estudo do evolucionismo de Darwin à luz das idéias de Kuhn em filosofia da ciência. Dissertação de mestrado, Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1998.
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1987.
PAPAVERO, N. & LLORENTE-BOUSQUETS, J. Principia taxonomica. Vol. 5. Cidade do México, Universidade Nacional do México, 1994.
REISS, J. “Comment”. In: On the tendency of varieties to depart indefinitely from the original type. URL: http://www.wku.edu/~smithch/wallace/S043.htm, obtido em 30/04/2003.
SMITH, C. “Editorial”. In: On the tendency of varieties to depart indefinitely from the original type. URL: http://www.wku.edu/~smithch/wallace/S043.htm, obtido em 30/04/2003.


NOTAS:


(1) De 13 a 16/04/1856 o casal Lyell visitou a família Darwin; foi durante uma conversa sobre seleção natural, provavelmente, que Lyell recomendou o artigo de 1855 para Darwin (cf. Correspondence, 7, p. 108, n. 4). Wallace conheceu Darwin pessoalmente em 1853, numa passagem por Londres, provavelmente no Museu de História Natural (cf. Ferreira, 1990, p. 36); a primeira carta preservada de Darwin para Wallace data de 01/05/1857 e discute o artigo -mas é na carta seguinte, de 22/12/1857, que Darwin menciona que Lyell chamou sua atenção para o texto (cf. Correspondence, 7, p. 107, n. 2.
(2) Na carta de 01/05/1857, a que Wallace se refere, Darwin escreveu: “Por sua carta, e mais ainda por seu artigo nos Annals, percebo claramente que temos pensado de maneira muito próxima e até certo ponto chegamos a conclusões semelhantes. Faz 20 anos este verão [1857] que eu abri meu primeiro caderno sobre a questão de como e de que maneira espécies e variedades diferem entre si. Estou agora preparando meu trabalho para publicação, mas eu acho que o trabalho é tão grande que, apesar de ter escrito muitos capítulos, não creio que estarei enviando material para a impressão em dois anos” (apud Ferreira, 1990, p. 36-7).
(3) Segundo Papavero, há ainda outra razão: a incapacidade de Darwin em decidir sobre o problema da especiação (cf. Papavero & Llorente-Bousquets, 1994, p. 89).
(4) Apesar das reclamações, algum reconhecimento para com o texto de Wallace de 1858 existiu; Darwin escreveu que: “Meu trabalho está agora próximo ao fim; mas como ele exigirá mais dois ou três anos para ser completado, e como minha saúde está longe de ser boa, apressei-me a publicar este resumo. Eu fui mais fortemente induzido a fazê-lo, pois o Sr. Wallace, que está agora estudando a história natural do arquipélago malaio, alcançou quase exatamente as mesmas conclusões gerais que eu sobre a origem das espécies. Ano passado, ele enviou-me um ensaio sobre esse assunto, com uma solicitação de que eu o repassasse para Sir Charles Lyell, que o enviou para a Sociedade Lineana, e o texto foi publicado no terceiro volume do periódico daquela sociedade. Sir C. Lyell e o Dr. Hooker, que conheciam meu trabalho (o último havia lido meu manuscrito de 1844), honraram-me com o convite para publicar, com o excelente artigo do Sr. Wallace, alguns breves extratos dos meus artigos” (Darwin, 1978, p. 6). Também há um reconhecimento quanto à importância do texto de 1855: “Esta concepção da relação das espécies numa região para com aquelas em outra não difere muito (por substituir a palavra variedade por espécie) daquela recentemente avançada numa engenhosa comunicação pelo Sr. Wallace, na qual ele conclui que ‘cada espécie passa a existir num espaço e tempo coincidente com uma espécie preexistente proximamente aparentada’” (Darwin, 1978, p. 184). Estas são as principais; no índice, podem ser obtidas outras referências feitas por Darwin a Wallace.
(5) Em colchetes também, pois sabe-se agora que Darwin, com grande freqüência, não escrevia mês e ano em suas cartas, e a de 18/06/1858 seguiu a regra.
(6) Todavia, Smith observa que: “Wallace ... indicou em letra impressa em ao menos quatro ocasiões distintas que o manuscrito que enviou para Darwin não se pretendia um produto acabado: numa carta de 1869 para o biólogo alemão Adolf Bernhard Meyer (mais tarde reimpressa em 1895, Nature, vol. 52, p. 415); numa nota acrescentada ao ensaio, quando ele foi reimpresso em 1891 (in Wallace, A seleção natural e a natureza tropical, p. 27); no artigo ‘A aurora de uma grande descoberta’, de janeiro de 1903 (Black and White, vol. 25, p. 78) e em sua autobiografia Minha Vida, de 1905 (vol. 1, p. 363)” (editorial, 2003, site wku.edu/~smithch/wallace/S043.htm).
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